FÚRIA SANGUINÁRIA (1949)
A
preocupação maior de Cody Jarrett (James Cagney), é não desiludir a mãe, que
coloca nele todas as esperanças e ambições. Ele tem de atingir “o topo do
mundo”. Esta ambição é característica de muitas sociedades, mas é particularmente
lembrada em muitos filmes norte-americanos, o que faz dela uma frase
emblemática de um país que, mais do que se preocupar com o sucesso, vive
obcecado pela ganância. Querer o “topo do mundo” pode ser uma pretensão
legítima quando esse topo é uma perfeição continuada, mas também pode ser a
perdição de qualquer um. Cody Jarrett, um gangster que vive do roubo e mostra
algum sadismo na forma como assassina friamente quem se lhe cruza no caminho,
tem associado a si uma quadrilha que comanda. Acabará por atingir um “top of
the world”, é certo, ele próprio o grita, numa das declarações mais célebres de
toda a história do cinema, mas o seu topo do mundo vai revelar-se uma vitória
trágica e altamente explosiva. "Made it,
Ma! Top of the world!" ("Eu consegui, mãe! Estou no topo do mundo!").
Esta frase acaba por encerrar as duas obsessões deste homem atravessado por uma
certa loucura, que tinha na mãe e no sucesso as suas aspirações maiores.
“White
Heat” é um dos mais significativos filmes de gangsters (e do filme negro) da
história do género. Em 2008, o American Film Institute, através de uma
sondagem, indicou aqueles que foram considerados os dez melhores filmes em cada
género clássico e “White Heat” ficou num muito honroso quarto lugar (1). A
citação "Made it, Ma! Top of the world!" ficou classificada em décimo
oitavo lugar num total de 100 melhores citações na lista organizada pela mesma
instituição (2).
Segundo
alguns estudiosos, a personagem de Cody Jarrett pode ter sido inspirada em
Francis Crowley, um assassino de Nova Iorque que lutou com a polícia na
primavera de 1931, apenas com dezanove anos de idade. Executado em 21 de
Janeiro de 1932, as suas últimas palavras foram: "Envio o meu amor para a
minha mãe ("Send my love to my mother."). Outra inspiração pode ter
sido Arthur Barker, um gangster dos anos de 1930, filho da celebérrima Ma
Barker. Também o assalto ao comboio que surge no início do filme se julga
baseado no roubo do Southern Pacific's "Gold Special", perpetrado
pelos irmãos D'Autremont, em 1923. Sejam ou não autênticas estas influências, a
verdade é que a sinceridade e a autenticidade de personagens e situações deste
filme de Raoul Walsh são evidentes e uma das características que tornam a obra
um marco decisivo, não só no género “filme de gangsters” ou do “filme negro”,
como em toda a história do cinema.
O
argumento de Ivan Goff e Ben Roberts, partindo de uma história de Virginia
Kellogg é magnífico, inteligente, adulto, jogando habilmente com elementos da
psicanálise que por essa altura andava tanto pelos ares de Hollywood (“Fúria
Sanguinária” foi nomeado para o Oscar de Melhor Argumento.). As relações de
Cody Jarrett com a mãe, com as mulheres, com os membros do gang, a sua obsessão
com o triunfo, a relação com as armas e o poder que elas transmitem, tudo isso
é dado de forma subtil, mas eficaz. Os confrontos constantes do nevrótico Cody
Jarrett com Verna Jarrett, sua mulher (Virginia Mayo), com o pérfido Big Ed
Somers (Steve Cochran), com o traiçoeiro Hank Fallon (Edmond O'Brien), só encontram
lenitivo na estranha e obviamente patológica aproximação da mãe Jarrett
(Margaret Wycherly). Mesmo quando sente alguma simpatia por um dos membros do
seu gang, este revela-se afinal um infiltrado. Cody Jarrett nunca deixa de ser
um solitário, um acossado, um desintegrado, herdando do pai uma loucura que o
perturba dramaticamente com dores de cabeça.
A
interpretação de James Cagney, num dos mais conseguidos trabalhos da sua vasta
carreira (há quem assegure que é a sua melhor criação de sempre!), é simplesmente
genial, oscilando entre o nervosismo e o patológico, entre a violência e uma
certa forma de ternura, sempre numa zona que ronda a loucura e por vezes nela
se abate.
Muito
curiosa é a dúbia relação de Coddy com a possessiva mãe, em oposição à relação
que estabelece com Verna, a mulher que, como quase sempre entre os gangsters, é
exibida como trofeu de caça e símbolo do poder (logo, quando Cody é preso ela
transita para Big Ed Somers, que assume a chefia do gang e conquista a mulher).
Este é um dos elementos mais interessantes da iconografia do “filme negro”: a
mulher como “femme fatal” que manipula e é manipulada, que funciona como
elemento decorativo e erótico para simples desfrute, que vive obcecada pelo
dinheiro e que evolui ao sabor do dinheiro, do poder.
Outro
elemento a sublinhar é o lado quase documental como por vezes o filme se
apresenta, testemunhando aspectos da actividade da polícia, como uma
perseguição acompanhada num mapa, no interior de um gabinete, onde se vão
cruzando informações.
A
fotografia de Sidney Hickox é igualmente um elemento a referir, num preto e
branco que serve notavelmente o tom e o estilo da obra, bem assim como a
partitura musical de Max Steiner. Raoul Walsh, um cineasta que como poucos
dominava o filme de acção e violência, tanto física como psicológica, tem
também aqui um dos seus pontos altos. O “filme de gangsters” e o “filme negro”
(aqui com limites que se interpenetram) sempre foi uma área onde se movimentou
com segurança, demonstrando um talento invulgar para dominar os conflitos,
deixar explodir a violência, mas controlando os seus efeitos de forma rigorosa,
criando personagens com uma rara densidade psicológica e física, criminosos
tocados pela redenção e agentes da lei por vezes corruptos, impondo um universo
de uma complexidade emocional difícil de igualar. Títulos como “Heróis
Esquecidos”, “Vidas Nocturnas”, “O Último Refúgio”, “Discórdia”, “Sem Consciência”
(que surge assinado por Bretaigne Windust) e este “Fúria Sanguinária” mostram
bem o génio de Walsh, descontando inúmeras outras obras no campo do western, do
filme de guerra e mesmo no domínio da comédia.
(1) A
lista dos 10 mais ficou assim estabelecida: 1. The
Godfather; 2. Goodfellas; 3. The Godfather Part Ii; 4. White Heat; 5. Bonnie
And Clyde; 6. Scarface: The Shame Of A Nation; 7. Pulp Fiction; 8. The Public
Enemy; 9. Little Caesar; 10. Scarface.
(2) As
20 frases mais célebres de toda a história do cinema, segundo o inquérito do
American Film Institute são: 1. “Frankly,
my dear, I don't give a damn”. (Gone With the Wind, 1939); 2. “I'm gonna make
him an offer he can't refuse”. (The Godfather, 1972); 3. “You don't understand!
I coulda had class. I coulda been a contender. I could've been somebody,
instead of a bum, which is what I am”. (On the Waterfront), 1954); 4. “Toto,
I've a feeling we're not in Kansas anymore”. (The Wizard of Oz, 1939), 5.
“Here's looking at you, kid”. (Casablanca, 1942); 6. “Go ahead, make my day”.
(Sudden Impact, 1983); 7. “All right, Mr. DeMille, I'm ready for my close-up”.
(Sunset Blvd., 1950); 8. “May the Force be with you”. (Star Wars, 1977); 9.
“Fasten your seatbelts. It's going to be a bumpy night”. (All About Eve, 1950);
10. “You talking to me?” (Taxi Driver, 1976); 11. “What we've got here is
failure to communicate”. (Cool Hand Luke, 1967); 12. “I love the smell of
napalm in the morning”. (Apocalypse Now, 1979), 13. “Love means never having to
say you're sorry”. (Love Story, 1970); 14. “The stuff that dreams are made of”.
(The Maltese Falcon, 1941); 15. “E.T. phone home”. (E.T. the Extra-Terrestrial,
1982); 16. “They call me Mister Tibbs!” (In the Heat of The Night, 1967); 17.
“Rosebud”. (Citizen Kane, 1941); 18. “Made it, Ma! Top of the world!” (White Heat, 1949); 19. “I'm as mad as hell,
and I'm not going to take this anymore!” (Network, 1976); 20. “Louis, I think
this is the beginning of a beautiful friendship”. (Casablanca, 1942).
FÚRIA SANGUINÁRIA
Título original: White Heat
Realização: Raoul
Walsh (EUA, 1949); Argumento: Ivan Goff, Ben Roberts, segundo história de
Virginia Kellogg; Produção: Louis F. Edelman; Música: Max Steiner; Fotografia
(p/b): Sidney Hickox; Montagem: Owen Marks; Direcção artística: Edward Carrere;
Decoração: Fred M. MacLean; Maquilhagem: Perc Westmore, Edwin Allen, Gertrude
Wheeler; Assistentes de realização: Russell Saunders; Som: Leslie G. Hewitt;
Efeitos especiais: Roy Davidson, Hans F. Koenekamp; Companhia de produção: A
Warner Bros.-First National Picture; Intérpretes:
James Cagney (Cody Jarrett), Virginia Mayo (Verna Jarrett), Edmond O'Brien
(Hank Fallon / Vic Pardo), Margaret Wycherly (Ma Jarrett), Steve Cochran (Big Ed Somers), John Archer (Philip Evans),
Wally Cassell (Cotton Valletti), Fred Clark (Trader Winston), Joel Allen,
Claudia Barrett, Ray Bennett, Marshall Bradford, Chet Brandenburg, John Butler,
Robert Carson, Bill Cartledge, Bill Clark, Leo Cleary, Fred Coby, Tom Coleman,
G. Pat Collins, Bing Conley, Garrett Craig, Herschel Daugherty, Fern Eggen,
Charles Ferguson, Art Foster, Eddie Foster, Robert Foulk, Paul Guilfoyle, Perry
Ivins, Mickey Knox, Harry Lauter, DeForrest Lawrence, Nolan Leary, Murray
Leonard, Ian MacDonald, John McGuire, Sid Melton, Ray Montgomery, Mike Morelli, Robert Osterloh,
Milton Parsons, Ford Rainey, Grandon Rhodes, George Spaulding, George Taylor,
Ralph Volkie, Jack Worth, etc. Duração: 114 minutos; Distribuição em
Portugal: Warner Bros; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em
Portugal: 9 de Novembro de 1950.
JAMES CAGNEY (1899–1986)
James Francis Cagney nasceu a 7 de Julho de 1899, em
Nova Iorque, EUA, e faleceu a 30 de Maio de 1986, com 86 anos, em
Stanfordville, Nova Iorque, EUA. Foi um dos grandes actores de Hollywood no seu
período de ouro, sobretudo na sua componente de sedutor “duro”, ao lado de
Humphrey Bogart, Edward G. Robinson ou George Raft, disputando os favores do
público ao lado de “monstros sagrados” como Clark Gable, Gary Cooper ou Spencer
Tracy. Começa a carreira no teatro, em 1919, vestido de mulher, no musical
“Every Sailor”. Trabalha durante alguns anos nos palcos americanos, até ser
particularmente notado como protagonista de “Penny Arcade”, uma peça de 1929. A
Warner Bros. contrata-o para o seu estúdio, onde se torna rapidamente numa das
vedetas preferidas, sobretudo depois do seu enorme sucesso em “The Public Enemy”,
um dos mais influentes filmes de gangsters deste período. Em 1938, recebe uma
nomeação para o Oscar de Melhor Actor, em “Angels with Dirty Faces”, e em 1942
ganha o Oscar pela sua magnífica interpretação de George M. Cohan em “Yankee
Doodle Dandy”. Casado com a bailarina Frances Willard "Billie" Vernon
(1922–1986). Em 1999, o “American Film Institute” coloca-os entre os 50 maiores
mitos do cinema americano. Era um dos actores favoritos de Stanley Kubrick e
Orson Welles considerava-o “provavelmente o melhor actor de sempre frente a uma
câmara”.
Filmografia (principais
filmes): 1930: Sinners' Holiday, de
J. G. Adolfi (estreia no cinema); 1935: G Men (O Império do Crime), de William
Keighley; 1936: Ceiling Zero (Entre Nuvens), de Howard Hawks; 1938: Angels with
Dirty Faces (Anjos de Cara Negra), de Michael Curtiz; 1939: The Roaring
Twenties (Heróis Esquecidos), de Raoul Walsh; 1940: City for Conquest (A
Conquista da Cidade), de Anatole Litvak; Torrid Zone (Zona Tórrida), de William
Keighley; The Fighting 69th, de William Keighley; 1941: The Strawberry Blonde
(Uma Loira com Açúcar), de Raoul Walsh; 1942: Yankee Doodle Dandy (Canção
Triunfal), de Michael Curtiz; Captains of the Clouds (Corsários das Nuvens), de
Michael Curtiz; 1943: Johnny Come Lately (Revolta na Cidade), de W. K. Howard;
1947: 13 Rue Madeleine (O 13 Não Responde), de Henry Hathaway; 1949: White Heat
(Fúria Sanguinária), de Raoul Walsh; 1951: Come Fill the Cup (Nas Garras do
Vício), de Gordon Douglas; 1952: What Price Glory? (O Preço da Glória), de John
Ford; 1953: A Lion Is in the Streets (A Fera), de Raul Walsh; 1955: Mister Roberts, de John
Ford e Merlyn Le Roy ; Love Me or Leave Me (Ama-me ou
Esquece-me), de Charles Vidor; Run for Cover (O Fugitivo), de Nicholas Ray;
1956: Tribute to a Bad Man (Honra a Um Homem Mau), de Robert Wise; 1957:
Short-Cut to Hell, de James Cagney; Man of a Thousand Faces (O Homem das Mil
Caras), de Joseoh Pevney; 1959: Shake Hands with the Devil (Mãos Dadas com o
Diabo), de Michael Anderson; Never Steal Anything Small (O Herói do Bairro), de
Charles Lederer; 1961: One, Two, Three (Um, Dois, Três), de Billy Wilder; 1981:
Ragtime (Ragtime), de Milos Forman (último filme).
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