O ARREPENDIDO (1947)
Jacques Tourneur: “A morte do amigo de Mitchum, em ”Out of
the Past”, assume todo o seu sentido por causa da lâmpada que eu lá tinha
colocado. E isto muda a representação dos actores: no momento de filmar exijo
que se iluminem apenas as fontes naturais. Os actores ensaiaram sempre num estúdio ou no “plateau”, onde não houve
qualquer efeito de luz. Quando digo “acção”, agirão diversamente por causa da
luz, sobretudo se não estiverem preparados: assim, uma mulher jovem aproxima-se
dum candeeiro de petróleo ou duma janela para ler uma carta, o que nunca terá
feito antes, um actor baixará inconscientemente a voz. Isso permite-me dar uma
grande liberdade aos actores, pelo menos na aparência, e de os levar por si
próprios a fazerem certas coisas que fogem à rotina. Mas tudo vem naturalmente.
Não preciso de forçar a minha técnica para criar uma atmosfera visual.”
“Reparou que nunca uso objectivas inusitadas, que detesto os
enquadramentos demasiado rebuscados? É verdade. Procuro, antes de tudo o mais,
uma unidade visual que seja muito forte, utilizando planos, movimentos de
câmara muito simples. Tudo deve vir do interior. Isto não pode ser superficial.
Detesto os ângulos esquisitos, as objectivas deformantes. É muito fácil criar
uma atmosfera estranha desse modo. Enquanto que ficar muito perto dos actores,
nunca usar truques e, no entanto criar essa atmosfera, isso sim, é muito
difícil. É preciso pintar com a luz e devo dizer que a cultura pictórica que
recebi na minha infância me ajudou muito.”
“Detesto os directores de fotografia que iluminam de tal maneira que os
actores não têm liberdade. Era preciso lutar contra esta tendência em
Hollywood, sobretudo no filme a cores. Creio que se podem obter os mesmos
resultados com a cor que com o preto e branco, mas fica-se muitas vezes
prisioneiro de preconceitos e de noções falsas. Deve-se utilizar a cor como o
preto e branco. Foi o que tentei fazer em “Way of Gaúcho” ou “Wichita”, usando
o mesmo princípio quanto ao modo de iluminar uma cena.”
“Out of the Past” é um dos grandes
filmes de Jacques Tourneur, uma verdadeira obra-prima do “filme negro” dos anos
40. Partindo de um romance de Daniel Mainwaring, que surge com o pseudónimo de
Geoffrey Homes, e que no original se chamava “Build My Callows High”, este filme é um autêntico poema trágico,
que a fotografia de Nicholas Musuraca serve de forma admirável. Mais
recentemente, Taylor Hackford fez um “remake” desta obra, a que deu o título de
“Against All Odds” (Vidas em
Jogo), com Jeff Bridges, James Woods e Raquel Ward nos papéis anteriomente
vividos por Robert Mitchum, Kirk Douglas e Jane Greer (que surge no filme de
Hackford no papel de mãe de Raquel Ward). Mas esta revisão de um clássico é
perfeitamente desalentadora e frustrante, perdido que é todo o fascínio da obra
original.
Tudo principia numa
pequena cidade da Califórnia, Bridgeport, onde Jeff Bailey (Robert Mitchum),
dono de uma gasolineira, se encontra com Ann, a mulher com quem pretende casar.
Mas Joe Stefanos informa-o que With Sterling (Kirk Douglas), um milionário que
terá feito fortuna de formas muito suspeitas, certamente cruzando-se com o
submundo do crime, o mandara chamar. Enquanto ambos se dirigem para a mansão de
Sterling, em Lake Tohe, Jeff vai contando à mulher a sua vida passada. Como detective
privado fora contratado, anos atrás, para encontrar a amante de Sterling,
Kathie Moffett (Jane Greer) que o tinha abandonado, depois de o ter atingido a
tiro, e de lhe ter roubado 40.000 dólares. Jeff encontrou Kathie no México, mas
apaixonou-se por ela e acreditou na sua versão dos acontecimentos, que a
ilibavam de qualquer roubo. Mudaram-se para S. Francisco, onde viveram
anonimamente até serem descobertos por Fisher, um antigo sócio de Jeff. Entre
várias peripécias, Jeff descobre que Kathie matara Fisher e fora realmente
responsável pelo roubo de que Sterling a acusara. Desiludido, muda-se para
Bridgeport. Aqui, o “fIash back” termina e
regressa-se ao tempo presente. Antes de entrar em casa de Sterling, Jeff
assegura a Ann que já não ama Kathie. Mas todas as suas certezas vacilam quando
a descobre, lado a lado com Sterling. Ambos o tentam aliciar para o seu lado,
procurando usá-Io como isco, incriminando-o num crime que não cometera. O
precipitar dos acontecimentos leva à destruição de todos, procurando Ann reter
de Jeff uma recordação que o assistente deste destrói, para que ela possa
libertar-se do passado e regressar à vida.
Este é, sem grandes
motivos para dúvidas, um dos mais belos e trágicos filmes de toda a história do
“thriller” americano. Tudo se processa com uma neutralidade de tom que faz
desta sucessão de mortes e traições acontecimentos anódinos, de uma monstruosa
normalidade. Há como que uma inter-penetração do universo do filme fantástico
com as regras e as convenções do “thriller”, o que confere a esta obra um
estranho e fascinante clima. Mais uma vez a iluminação, e o jogo dos actores interfere de forma
decisiva para o resultado final. Quando Kathie entra num bar de Acapulco, Jeff
declara, em off, que ela “entrou vinda do luar” e este tom maravilhoso impregna
todo o filme, que oscila entre um certo onirismo e um clima de tragédia
suspensa, por entre bares e álcool, fumo e jogo, calor e desejo. De resto, os
diálogos são brilhantes, num verdadeiro jogo de ping pong entre os protagonistas,
farses cortantes, irónicas, cinicas, apaixonadas.
Curiosamente, Tourneur
não fala deste filme como um dos seus preferidos, apesar de hoje em dia ser um
dos mais inequívocos “cult movie” da história do “filme negro”. Mas é com
simpatia que recorda a rodagem: “Fiquei
muito contente por rever este filme, que, na minha opinião, se aguenta muito
bem. O argumento de Mainwaring e o diálogo eram de primeira ordem e pude rodar
a maior parte do filme em exteriores. Na verdade, a aldeia que se vê é aquela
onde vou para pescar trutas. Conhecia toda a gente e sabia exactamente o que se
devia utilizar das paisagens. Servi-me dos verdadeiros habitantes para pequenos
papéis e, como estava longe do estúdio, pude sair da rotina: por exemplo,
evitei as transparências na cena de abertura, em que o carro do homem de mão de
Kirk Douglas se aproxima da bomba de gasolina. E fui eu que sugeri a Mainwaring
que um “gangster” fosse morto com uma cana de pesca. Era mais original do que
com uma pistola e mais estranho, sobretudo... Gostei muitíssimo de trabalhar
com Jane Greer, que era uma actriz maravilhosa, muito subestimada. A sua
personagem é original, em comparação com as “vamps” da época, e adoro as cenas
de amor que ela tem com Mitchum. São muito comoventes.”
Amor, sexo, morte. Um
dos temas de eleição, se não mesmo o tema preferido de Jacques Tourneur, ou o
tema recorrente na sua obra, é a sexualidade, a sexualidade ligada ao amor e à
morte. Pulsões
vitais e pulsões fatais. O que já vem de “Cat People” que fala de uma mulher que
teme a sua própria sexualidade, essa “pantera que tem dentro de si”. Fecha-se
no seu quarto para se afastar do marido, e a única vez que se deixa arrastar
pela sua libido (cena de amor com o psiquiatra, que a beija), o médico acaba
assassinado. Por alguma razão ela liberta a pantera do jardim zoológico,
acabando atropelada quando em liberdade. A simbologia não pode ser mais
evidente, ainda que seja bastante subtil a forma como se expressa no filme.
Apenas pela sugestão.
O
ARREPENDIDO
Título
original: Out of the Past
Realização:
Jacques
Tourneur (EUA, 1947); Argumento: Daniel Mainwaring, Frank Fenton, James M.
Cain, segundo romance de Daniel Mainwaring ("Build My Gallows High");
Produção: Warren Duff, Robert Sparks; Música: Roy Webb; Fotografia (p/b): Nicholas
Musuraca; Montagem: Samuel E. Beetley; Direcção artística: Albert S.
D'Agostino, Jack Okey; Decoração: Darrell Silvera; Guarda-roupa: Edward
Stevenson; Maquilhagem: Gordon Bau; Direcção de produção: James H. Anderson;
Assistentes de realização: Harry Mancke, Earl Harper, Lynn Shores; Som: Clem
Portman, Francis M. Sarver; Efeitos especiais: Russell A. Cully; Efeitos
visuais: Linwood G. Dunn; Companhia de produção: RKO Radio Pictures; Intérpretes: Robert Mitchum (Jeff
Bailey), Jane Greer (Kathie Moffat), Kirk Douglas (Whit Sterling), Rhonda
Fleming (Meta Carson), Richard Webb (Jim), Steve Brodie (Jack Fisher), Virginia
Huston (Ann Miller), Paul Valentine, Dickie Moore, Ken Niles, etc. Duração: 97 minutos; Distribuição em
Portugal (cinema): Rádio Filmes; Distribuição em Portugal (DVD): Costa do
Castelo Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal (Terraço
do Capitólio): 20 de Julho de 1951.
ROBERT MITCHUM (1917 – 1997)
Robert Charles Durman Mitchum nasceu a
6 de Agosto de 1917, em Bridgeport, Connecticut, EUA, e faleceu a 1 de Julho de
1997, de cancro de pulmão e enfisema, em Santa Barbara, Califórnia, EUA. A mãe,
Ann Harriet, era imigrante norueguesa, e o pai, James Thomas Mitchum, de origem
irlandesa, trabalhou num estaleiro e no caminho-de-ferro, onde faleceu tinha
Mitchum dois anos de idade. Irrequieto e indisciplinado, foi expulso de alguns
estabelecimentos de ensino, o que levou a mãe a transferi-lo para os avós, em
Felton, onde continuou a sua saga. Em 1930, foi morar com sua irmã mais velha,
em Nova York. Viajou por todo o país, em vagões de comboio, tendo desempenhado
várias tarefas, chegando a ser pugilista profissional. Em Savannah, Geórgia,
foi preso por vadiagem. Fugiu, voltou para a família, em Delaware, onde
conheceu a adolescente Dorothy Spence, com quem viria a casar (e com quem se
manteve até à sua morte). Voltou para a estrada. Mas em 1936, a irmã Julie
convence-o a participar na companhia de teatro local. Aparece como actor e
dramaturgo. Em 1940, casa-se, nasce o primeiro filho, e Robert arranja um
emprego estável, como operador de máquinas. Depois de um acidente em que quase
ficou cego, dedica-se inteiramente ao cinema, como figurante e actor em
pequenos papéis de filmes de serie B, sobretudo westerns protagonizados por Hopalong
Cassidy. Entre 1942 e 1943 entra em dezenas de obras e a sua carreira não pára,
com prestações cada vez mais significativas. Foi definitivamente, entre os anos
40 e 60, um dos maiores actores do cinema americano, com uma característica
muito própria, interpretando personagens do filme negro, do policial, do
western ou de filmes de guerra, com uma aparente indiferença que cativava e
surpreendia. Em 1992, foi-lhe atribuído
o Cecil B. DeMille Award, pela sua contribuição para a arte cinematográfica. Em
1946, foi nomeado para o Oscar de Melhor Actor Secundário pela actuação em
“Também Somos Seres Humanos”. Em 1984, recebeu uma estrela no “Walk of Fame”,
que ficou situada no 6240, Hollywood Blvd.
Filmografia: 1942: The Magic of Make-Up
(documentário), Saboteur (Sabotagem), de Alfred Hitchcock; Principais filmes:
1944: Thirty Seconds over Tokyo (Trinta Segundos Sobre Tóquio), de Mervyn
LeRoy; 1945: The Story of G.I. Joe (Também Somos Seres Humanos), de William A.
Wellman;
1946: Till the End of Time (O Direito à
Vida), de Edward Dmytryk; 1946: Undercurrent (Estranha Revelação), de Vincente
Minnelli; 1947: Pursued (Núpcias Trágicas), de Raoul Walsh; 1947: Crossfire
(Encruzilhada), de Edward Dmytryk; 1947: Desire Me (A Mulher do Outro), de
George Cukor; 1947: Out of the Past (O Arrependido), de Jacques Tourneur; 1948:
Blood on the Moon (Céu Vermelho), de Robert Wise; 1949: The Red Pony (O Potro
Vermelho), de Louis MIlestone; 1949: The Big Steal (O Grande Assalto), de
Donald Siegel; 1952: Macao (Macau), de Josef von Sternberg; 1952: One Minute to
Zero (Missão na Coreia), de Tay Garnett; 1952: The Lusty Men (Idílio Selvagem),
de Nicholas Ray; 1952: Angel Face (Vidas Inquietas), de Otto Prerminger; 1953:
White Witch Doctor (A Feiticeira Branca), de Henry Hathaway; 1953: Second
Chance (Cruel Perseguição), de Rudolph Maté; 1954: River of No Return (Rio sem
Regresso), de Otto Preminger; 1955: The Night of the Hunter (A Sombra do
Caçador), de Charles Laughton; 1955: Man with the Gun (Sozinho Contra a
Cidade), de Richard Wilson; 1957: Heaven Knows, Mr. Allison (O Espírito e a
Carne), de John Huston; 1959: The Angry Hills (As Colinas da Ira), de Robert
Aldrich; 1959: The Wonderful Country (Quem Ventos Semeia), de Robert Parrish;
1960: Home from the Hill (A Casa da Colina), de Vincente Minnelli; 1962: The
Longest Day (O Dia Mais Longo), de Ken Annakin, Andrew Marton e Bernhard Wicki;
1962: Two for the Seesaw (Baloiço para Dois), de Robert Wise; 1963: The List of
Adrian Messenger (As Cinco Caras do Assassino), de John Huston; 1966: El Dorado
(El Dorado), de Howard Hawks; 1968: 5 Card Stud (O Preço de Cinco Jogadores),
de Henry Hathaway; 1968: Secret Ceremony (Cerimónia Secreta), de Joseph Losey;
1970: Ryan's Daughter (A Filha de Ryan), de David Lean; 1973: The Friends of
Eddie Coyle (Selva Humana), de Peter Yates; 1975: The Yakuza (Yakuza) - de
Sydney Pollack; 1975: Farewell, My Lovely (O Último dos Duros), de Dick
Richards; 1976: The Last Tycoon (O Grande Magnate), de Elia Kazan; 1984:
Maria's Lovers (Os Amantes de Maria), de Andrei Konchalovsky; 1991: Cape Fear
(O Cabo do Medo), de Martin Scorsese; 1997: James Dean: Race with Destiny (TV),
seu último trabalho.
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