terça-feira, 3 de janeiro de 2017

O VALE ERA VERDE


O VALE ERA VERDE (1941)

O início dos anos 40 do século XX foram fabulosos para John Ford. Senão atente-se nesta progressão: 1940: “Vinhas da Ira” e “The Long Voyage Home”; 1941: “A Estrada do Tabaco” e “O Vale era Verde”. Um conjunto de filmes abertamente sociais, onde se afloram os problemas do trabalho, a sair de uma época negra na sociedade norte-americana, precisamente os anos da Grande Depressão.
John Ford, que se dizia ser um “fazedor de westerns” e que era considerado por alguns, com razão, um conservador, e sem razão, um reacionário, mostra nesta sucessão de quatro títulos a sua concepção humanista da sociedade e mostra igualmente que a complexidade da sua análise e do seu olhar ultrapassava em muito as etiquetas com que por vezes se procura arrumar com certas personalidades. Revendo agora “O Vale era Verde”, até a designação de clássico, que quase toda a gente lhe cola, e eu também, pode parecer redutora. O filme é um modelo de classicismo, sim, mas tem muito de arrojado e de novo nesses anos do dealbar da década de 40.
Philip Dunne foi durante muitos anos o argumentista preferido de Ford. Foi ele que adaptou o romance de Richard Llewellyn ao cinema, com uma inspiração rara. A história podia redundar numa lamechice insuportável, mas o rigor da escrita de Dunne, e a forma como Ford a coloca em imagens transformam-na numa epopeia humana de profundo significado e projecção universal, apesar de nos encontramos no País de Gales, numa pequena comunidade mineira. 


Huw (Roddy McDowall), o protagonista, é uma personagem que nós não vemos no seu corpo de adulto, apesar de ser pela sua voz que se inicia o relato. Apenas se veem as mãos, embalando os seus pertences no xaile que a sua mãe levava ao mercado: “Vou-me embora do meu vale. Para não mais voltar. Deixo para trás as memórias de 50 anos. A memória.” Assim se inicia um longo flashback que recorda a juventude de Huw Morgan nesse vale que era verde e que os tempos e os homens foram tornando negro, como o pó que se desprende das minas que alimentam e amortalham quantos delas vivem.
Esta é, pois, a história da família Morgan ao longo de vários anos. As primeiras recordações de Huw são de felicidade, subindo a colina verdejante de mão dada com o pai, numa altura em que a harmonia social parecia evidente, ou apenas o era na memória inocente de Huw. Depois, à medida que vai crescendo, os anos passando, os problemas agigantam-se para quem vive da mina, e que são todos, directa ou indirectamente. Com a Grande Depressão, a crise instala-se, os patrões dispensam empregados, reduzem-se salários, membros da família partem à procura de trabalho noutras regiões, instalam-se os conflitos sociais, decretam-se greves, formam-se os sindicatos, passam-se meses e meses sem trabalho, sem salário, a fome agudiza-se. As recordações de Huw deixaram de ser felizes
Os Morgan são pai e mãe, quatro e uma filha, entre eles o mais novo, Huw. Os episódios que vive esta família são de todo o tipo e alternam entre o prazer da vida comum e a tragédia que por vezes bate à porta da comunidade. O pai Morgan (Donald Crisp) é um velho representante da velha ordem que aceita e cumpre escrupulosamente. Ele não entende a criação dos sindicatos nem aprova as greves, por muito que o pároco local, Mr. Gruffydd (Walter Pidgeon), não se incomode com os mesmos e ache mesmo que só em conjunto, com a força do grupo, se possam defender direitos e lutar contra abusos. Apesar da idade e do nítido ascendente moral que desfruta junto dos demais mineiros, começa a ser olhado de esguelha, e os próprios filhos o contradizem, ainda que sempre respeitosamente. A mãe Morgan (Sara Allgood) procura manter o rebanho reunido e apela à harmonia, tanto mais que outras história se interpõe na família. A filha Angharad (Maureen O'Hara) é pedida em casamento pelo filho do dono das minas, mas ela ama o padre Gruffydd, que também não a olha com desinteresse. Os conflitos sociais e individuais cruzam-se e estabelecem uma teia de inesperados resultados. Estamos obviamente nos domínios do melodrama, mas do melodrama de melhor tradição, conduzido com sobriedade e uma vigorosa elegância própria do olhar e do sentir de Ford. O filme tem imagens de uma arrepiante beleza plástica, quer as ruas da pequena aldeia mineira, quer os interiores das casas e da igreja, quer o dramático interior da mina, e os seus arrastados elevadores que levam e trazem (quando trazem) os mineiros do interior da terra.


Alguns criticaram este filme na época da sua estreia por aparecerem as personagens do Pai Morgan e do padre Gruffydd, o primeiro pela sua negação dos sindicatos e das greves, o segundo pela sua devoção ao sacerdócio, que o leva a abdicar de parte da sua vida. Creio que, em lugar de diminuir o filme, estas personagens agigantam o seu alcance em termos sociais. Não estamos no domínio do que deve ser, mas do que é. O que a escritora do romance e posteriormente argumentista e realizador fazem é mostrar parte da realidade social, com as suas contradições próprias de um tempo e de crise e de mudança. Também o dócil comportamento da filha Angharad poderia ser criticado a olhos de hoje, mas o que vemos é um retrato e uma analise de comportamentos dos anos 30, sobretudo numa pequena comunidade mineira do Pais de Gales. Por isso o trabalho de John Ford nos merece todo o crédito e justifica os maiores encómios, tanto mais que o talento com que esboça este quadro quase épico de uma pequena comunidade mineira é de um verdadeiro artista, seguro no retrato, certeiro nas cores (um precioso preto e branco com a assinatura de Arthur C. Miller), vibrante no ritmo, lírico na sensibilidade, magistral no conjunto. Haverá ainda que sublinhar o trabalho da cenografia, recriando nas montanhas de Santa Mónica, nos EUA, uma comunidade mineira inspirada na de Gilfach Goch, no País de Gales. Também a banda sonora é notavelmente composta por várias canções gaulesas que se integram com propriedade nos momentos determinantes da obra, sobretudo em cenas de grandes conjuntos humanos que serpenteiam, rua acima, em direcção à mina, ou rua abaixo, de regresso às casas.
No ano de 1942, na cerimónia de atribuição dos Oscars relativos ao ano anterior, o vencedor do Melhor Filme do ano e do Melhor Realizador foram “How Green Was My Valley” e John Ford. Nesse ano foram ainda nomeados “Blossoms in the Dust” (Mervyn LeRoy), “Citizen Kane” (Welles), “Here Comes Mr. Jordan” (Alexander Hall), “Hold Back The Dawn” (Mitchell Leisen), “The Little Foxes” (Wyller), “The Maltese Falcon” (Huston), “One Foot in Heaven” (Irving Rapper), “Sergeant York” (Hawks) e “Suspicion” (Hitchcock). Nem “Citizen Kane” nem Orson Welles sairam triunfadores. Claro que a Academia premiou o classicismo, em desfavor da modernidade. Mas sempre, ou quase sempre, foi assim. Apesar de tudo, “O Vale era Verde” continua a ser uma obra-prima.


O VALE ERA VERDE
Título original: How Green Was My Valley
Realização: John Ford (EUA, 1941); Argumento: Philip Dunne, segundo romance de Richard Llewellyn; Produção: Darryl F. Zanuck; Música: Alfred Newman; Fotografia (p/b): Arthur C. Miller; Montagem: James B. Clark; Direcção artística: Richard Day, Nathan Juran; Decoração: Thomas Little; Guarda-roupa: Gwen Wakeling; Maquilhagem: Guy Pearce; Direcção de Produção: Gene Bryant, William Koenig; Assistentes de realização: Gene Bryant, Edward O'Fearna,Wingate Smith; Departamento de arte: Walter Cooper, Ben Wurtzel; Som: Eugene Grossman, Roger Heman Sr.; Efeitos visuais: Chesley Bonestell, W. Percy Day, Fred Sersen; Companhias de produção: Twentieth Century Fox Film Corporation; Intérpretes: Walter Pidgeon (Mr. Gruffydd), Maureen O'Hara (Angharad), Anna Lee (Bronwyn), Donald Crisp (Mr. Morgan), Roddy McDowall (Huw), John Loder (Ianto), Sara Allgood (Mrs. Morgan), Barry Fitzgerald (Cyfartha), Patric Knowles (Ivor), Welsh Singers, Morton Lowry, Arthur Shields, Ann E. Todd, Frederick Worlock, Richard Fraser, Evan S. Evans, James Monks, Rhys Williams, Lionel Pape, Ethel Griffies, Marten Lamont, etc. Duração: 118 minutos; Distribuição em Portugal: Fox Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: Cinema Tivoli, 28 de Dezembro de 1942.

WALTER PIDGEON (1987 – 1984)
Walter Davis Pidgeon nasceu no Canadá, a 23 de Setembro de 1897, em Saint John, New Brunswick, e viria a falecer a 25 de setembro de 1984, com 87 anos, em Santa Mónica, Califórnia, EUA. Veio muito novo com a família para os EUA, estudando, na Universidade de New Brunswick, direito e teatro. Durante a I Guerra Mundial alistou-se na 65th Battery, da Royal Canadian Field Artillery. Depois da Guerra mudou-se para Boston, Massachusetts, trabalhou num banco e estudou no New England Conservatory of Music. Já em Nova Iorque fez a sua estreia na Broadway em 1925. Tinha começado a integrar o elenco de alguns filmes ainda mudos, em papéis secundários, mas com o advento do sonoro fez valer a sua voz e surgiu em diversos filmes e musicais, como “The Bride of the Regiment” (1930), “Sweet Kitty Bellairs” (1930), “Viennese Nights” (1930) ou “Kiss Me Again” (1931).
Em 1941, com “How Green Was My Valley” (1941) a sua popularidade atinge o auge, que se irá manter ao longo de duas décadas, em obras como “Mrs. Miniver” (1942), onde foi nomeado para Melhor Actor pela Academia, a sequela “The Miniver Story” (1950). Em 1944 volta a ser nomeado em “Madame Curie”, mas a sua carreira ganha forma em muitos outros sucessos, alguns deles ao lado de Greer Garson, “Mrs. Parkington” (1944), “Julia Misbehaves” (1948), “That Forsyte Woman” (1949), “Scandal at Scourie” (1953) ou “The Red Danube” (1949).

“The Bad and the Beautiful” e “Forbidden Planet” são títulos já da década de 50, altura em que o actor volta à Broadway, em peças como “Take Me Along”, onde é nomeado para o Tony Award. Trabalha igualmente para a televisão, e, durante o machartismo, seu nome aparece envolvido na perseguição aos comunistas em Hollywood, sendo acusado de tentar impedir a realização do filme “O Sal da Terra” (1954). “Advise & Consent” (1962) e “Funny Girl” (1968) são dois dos seus últimos trabalhos maiores no cinema. “Sextette” (1978) foi o seu derradeiro. 

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