terça-feira, 3 de janeiro de 2017

FOI UMA MULHER QUE O PERDEU


FOI UMA MULHER QUE O PERDEU (1939)

“Foi uma Mulher que o Perdeu”, de Marcel Carné, é um dos filmes mais importantes de um movimento estético e cultural francês que dominou as décadas de 30 e 40 do século XX. Esta corrente expressou-se sob diversas manifestações artísticas, da poesia à literatura, do teatro ao cinema, que é o campo que nos importa desenvolver.
Tendo-se iniciado pouco depois do aparecimento do sonoro, dá uma enorme importância à palavra, aos diálogos, por vezes aos monólogos narrativos. Mas, surgindo igualmente depois do expressionismo alemão, não deixa de ser por ele influenciado. Por outro lado, sendo contemporâneo da Frente Popular em França, uma coligação de esquerda que reunia socialistas, comunistas e radicais, e que ganhou as eleições parlamentares de Maio de 1936, com Léon Blum como primeiro ministro, e se manteve no poder até 1938, não deixou igualmente de reflectir esse ambiente social e político. A designação “realismo poético” terá partido do crítico e ensaísta George Sadoul, que o terá ido buscar a um ensaísta inglês, Roger Manvell.
No cinema contou com alguns cineastas que o impuseram e difundiram, como Jean Vigo, René Clair, Jean Renoir, Marcel Carné, Marcel L'Herbier, Pierre Chenal, Marc Allégret, Jacques Becker, Jean Grémillon, Jacques Feyder ou Julien Duvivier. Também contou com actores emblemáticos, como Jean Gabin, Michel Simon ou Michèle Morgan. Igualmente no campo técnico e nos colaboradores mais chegados surgiram nomes que não se podem dissociar do movimento: argumentistas e dialoguistas como Jacques Prévert, Henri Jeanson, Marcel Pagnol, Charles Spaak, um director artístico como Lazare Meerson ou um decorador como Alexandre Trauner estão neste caso. Também existiram directores de fotografia especialmente vocacionados para este cinema brumoso, como foram os casos de Jules Kruger, Eugen Schüffan, Curt Courant ou Claude Renoir.
Neste grupo todo de nomes, alguns se destacam como faróis maiores desta corrente: o realizador Marcel Carné, o poeta e dialoguista Jacques Prévert, o director de fotografia Curt Courant, o cenógrafo Alexandre Trauner e o actor Jean Gabin. Todos reunidos em “Le Jour se Lève”, um dos títulos mais carismáticos deste movimento.
Algumas das características fundamentais do realismo poético são um contexto social onde abundam personagens populares, operários, soldados, prostitutas, marginais, quase sempre enquadradas em cenários urbanos, suburbanos, degradados, pesando sobre elas maldições, destinos trágicos, fatalidades a que não se consegue fugir. A cidade é muitas vezes mostrada como representação do mal e do vício, para o que conta muito a organização do espaço arquitectónico, a iluminação, a bruma e o nevoeiro. Este é um elemento que, vindo do expressionismo alemão, passa por França a caminho dos EUA e do filme negro. Afinal um percurso de muitos cineastas que, fugindo do nazismo em ascensão na Alemanha, passam pela Europa, em trânsito para Hollywood.
Para terminar esta nota sobre o realismo poético, diga-se ainda, que a sua influência foi manifesta, tanto no neo-realismo italiano, como na nouvelle vague.


Quanto a “Le Jour se Lève”, de Marcel Carné, este é um filme onde se podem observar todas as características atrás enunciadas. Senão vejamos. Como protagonista, vamos encontrar François (Jean Gabin), um operário, um homem vigoroso e apaixonado, mas que nada diria disposto à violência, apesar das difíceis condições do seu emprego. Recebe um dia no seu modesto apartamento, num bairro popular de Paris, Valentin (Jules Berry), que acaba assassinado com um tiro de pistola. O arranque do filme é magnífico, iniciando-se com um plano em plongé sobre um carro de cavalos que entra numa praça. A câmara vai acompanhando o percurso da carroça, descobrindo lentamente o ambiente das ruas e da praça, mostrando a tranquilidade e normalidade do que por ali se passa. Depois a câmara incide sobre um prédio de seis andares, entramos pelas escadas que um cego vai subindo, ouve-se um grito, “agora esticaste-te” alguém diz por detrás de uma porta que se abre e sai Valentin, contorcendo-se até cair pelas escadas abaixo, parando junto ao cego que sobe e descobre com a bengala que “aqui está um homem caído”. Corte para o exterior, para a rua onde a polícia chega e os populares se vão juntado em redor do prédio. Surgem os boatos: “Há um morto”. “Mataram um cego”. “Foi suicídio”. “Coitado, cego, que é que esperam?”. Dois polícias sobem até ao sexto andar, batem à porta. “Não abro! Vão-se embora! Não quero ver ninguém”. É François que descobrimos agora, uma pistola na mão, acabou de disparar sobre a porta. Os polícias retiram. Nas escadas, a multidão dispersa. Está definida a acção de “Foi uma Mulher que o Perdeu”.
O que sucede de seguida é fácil de resumir: um assassino barrica-se no seu apartamento de um sexto andar, num bairro popular de Paris. Uma porta ao fundo do quarto, uma janela a deitar para a rua. A polícia a rodear o imóvel. Os populares a encherem a praça fronteiriça. François encurralado com um animal. Vai pensando no que fez, e em tudo o que levou àquele desfecho. “Foi uma Mulher que o Perdeu” é o título em português, que indica desde já uma pista. Será a correcta? “Le Jour se Lève”, título original, pode traduzir-se por “nasce o dia”. Mais enigmático e poético. François permanece enclausurado, a fumar cigarros enquanto os tem, empunhando uma arma que coloca à defesa todos quantos o rodeiam. Vai rememorando a sua vida com Clara (Arletty), assistente de Valentin no seu número de cães amestrados. E todo o processo se desdobra. O destino, ou as condições sociais, a fatalidade que parece perseguir alguns, ou a violência do dia a dia numa sociedade competitiva, parecem absolver François, mas não as regras da justiça, ou a consciência individual.
As interpretações, magníficas, sobretudo de Jean Gabin, a realização e os diálogos que sublinham o lado poético do contexto social, a fotografia e os cenários, fazem desta obra uma das mais representativas do cinema francês do período de entre duas guerras. Uma obra prima absoluta de uma corrente cinematográfica que teve uma influência decisiva na história de todo o cinema que haveria de surgir depois.


FOI UMA MULHER QUE O PERDEU
Título original: Le jour se lève
Realização: Marcel Carné (França, 1939); Argumento: Jacques Viot, Jacques Prévert (diálogos); Produção: Jean-Pierre Frogerais; Música: Maurice Jaubert; Fotografia (p/b): Philippe Agostini, André Bac, Albert Viguier, Curt Courant; Montagem: René Le Hénaff; Design de produção: Alexandre Trauner; Guarda-roupa: Boris Bilinsky; Direcção de Produção: Albert Brachet, Paul Madeux; Assistentes de realização: Pierre Blondy, Jean Fazy; Som: Armand Petitjean; Companhia de produção: Productions Sigma; Intérpretes: Jean Gabin (François), Jules Berry (M. Valentin), Arletty (Clara), Jacqueline Laurent (Françoise), Mady Berry (porteira), René Génin (porteiro), Arthur Devère (Mr. Gerbois), René Bergeron (dono do café), Bernard Blier (Gaston), Marcel Pérès (Paulo), Germaine Lix (cantora), Gabrielle Fontan, Jacques Baumer, Annie Carriel, Léonce Corne, Georges Douking, Henry Farty, Georges Gosset, Robert Le Ray, Albert Malbert, Marcel Melrac, André Nicolle, Guy Rapp, Max Rogerys, Madeleine Rousset, Marcel Rouzé, Maurice Salabert, Claude Walter, etc. Duração: 93 minutos; Distribuição em Portugal: NOS Audiovisuais; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 24 de Junho de 1943.

JEAN GABIN (1904-1976)
Jean Gabin, cujo nome de baptismo era Jean Alexis Moncorgé, nasceu em Paris, França, a 17 de Maio de 1904, e haveria de falecer, a15 de Novembro de 1976, em Neuilly-sur-Seine, com 72 anos. Foi o mais popular e importante actor do cinema francês entre os anos 30, quando iniciou a sua carreira, e os anos 60, quando atingiu um estatuto de vedeta indiscutível. Começou por trabalhar como actor de teatro, em revistas e operetas, antes de surgir no cinema, primeiro em curtas-metragens ainda mudas, em 1930, como “L'héritage de Lilette” ou” Ohé! les valises”, “On demande un dompteur” ou “Les lions”, ou ainda “Chacun sa chance”. Depois desenvolve uma filmografia vasta, com mais de 95 títulos, trabalhando sob a direcção de alguns dos maiores cineastas franceses (e internacionais) do seu tempo. “Les bas-fonds”, “La grande illusion”, “La bête humaine” (de Jean Renoir), “Pépé le Moko” (de Julien Duvivier), (de Jean Renoir), “Gueule d'amour!”, “Remorques” (de Jean Grémillon), “Quai des brumes”, “Le jour se lève” (de Marcel Carné, “Au-delà des grilles” (de René Clément) são alguns títulos importantes das décadas de 30 e 40.
A partir dos anos 50, instala-se como o “paxá” do cinema francês, criando personagens de polícias ou gangsters, de grandes senhores dos negócios ou da política, em filmes que continuaram a marcar o seu tempo: “Le plaisir”, “Touchez pas au grisbi”, “Napoléon”, “French Cancan”, “Un singe en hiver”, “Le Chat”, “Le Pacha”, “La Traversée de Paris”, “Les misérables”, “Maigret tend un piège”, “En cas de malheur”, “Le cave se rebiffe”, “Mélodie en sous-sol”, “Maigret voit rouge”,
“Le soleil des voyous”, “Le pacha”, “Le clan des Siciliens”, “Peau d'ane”, “Deux hommes dans la ville”, “Verdict”, entre tantos outros, muitos dos quais dirigidos por realizadores da velha geração contra a qual se insurgiram os novos talentos da “Nouvelle Vague”, Julien Duvivier, Claude Autant-Lara, Jean-Paul Le Chanois, Jean Delannoy, Denys de La Patellière, Henri Verneuil, Gilles Grangier, Pierre Granier-Deferre, André Cayatte. O seu ultimo trabalho, de 1976, foi “L'année sainte”, de (de Jean Girault. Trabalhou com quase todos os grandes nomes do teatro e do cinema franceses, e uma das suas composições inesquecíveis foi a do Comissario Maigret, personagem criada por Georges Simenon.


Principais filmes do Realismo Poético
Sous les toits de Paris, de René Clair (1930)
À nous la liberté, de René Clair (1931)
Cœur de lilas, de Anatole Litvak (1932)
14 Juillet, de René Clair (1933)
Liliom, de Fritz Lang (1934)
L'Atalante, de Jean Vigo (1934)
La Kermesse héroïque, de Jacques Feyder (1935)
La Belle Équipe, de Julien Duvivier (1936)
Pépé le Moko, de Julien Duvivier (1937)
La Grande Illusion, de Jean Renoir (1937)
Entrée des artistes, de Marc Allégret (1938)
Le Quai des brumes, de Marcel Carné (1938)
La Bête humaine, de Jean Renoir (1938)
Le jour se lève, de Marcel Carné (1939)
Le dernier tournant, de Pierre Chenal (1939)
Remorques, de Jean Grémillon (1941)

Les Enfants du paradis, de Marcel Carné (1945)

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