FOI
UMA MULHER QUE O PERDEU (1939)
“Foi uma Mulher que o Perdeu”, de Marcel
Carné, é um dos filmes mais importantes de um movimento estético e cultural
francês que dominou as décadas de 30 e 40 do século XX. Esta corrente
expressou-se sob diversas manifestações artísticas, da poesia à literatura, do
teatro ao cinema, que é o campo que nos importa desenvolver.
Tendo-se iniciado pouco depois do
aparecimento do sonoro, dá uma enorme importância à palavra, aos diálogos, por
vezes aos monólogos narrativos. Mas, surgindo igualmente depois do
expressionismo alemão, não deixa de ser por ele influenciado. Por outro lado,
sendo contemporâneo da Frente Popular em França, uma coligação de esquerda que
reunia socialistas, comunistas e radicais, e que ganhou as eleições
parlamentares de Maio de 1936, com Léon Blum como primeiro ministro, e se
manteve no poder até 1938, não deixou igualmente de reflectir esse ambiente
social e político. A designação “realismo poético” terá partido do crítico e
ensaísta George Sadoul, que o terá ido buscar a um ensaísta inglês, Roger
Manvell.
No cinema contou com alguns cineastas
que o impuseram e difundiram, como Jean Vigo, René Clair, Jean Renoir, Marcel
Carné, Marcel L'Herbier, Pierre Chenal, Marc Allégret, Jacques Becker, Jean Grémillon,
Jacques Feyder ou Julien Duvivier. Também contou com actores emblemáticos, como
Jean Gabin, Michel Simon ou Michèle Morgan. Igualmente no campo técnico e nos
colaboradores mais chegados surgiram nomes que não se podem dissociar do
movimento: argumentistas e dialoguistas como Jacques Prévert, Henri Jeanson,
Marcel Pagnol, Charles Spaak, um director artístico como Lazare Meerson ou um
decorador como Alexandre Trauner estão neste caso. Também existiram directores
de fotografia especialmente vocacionados para este cinema brumoso, como foram
os casos de Jules Kruger, Eugen Schüffan, Curt Courant ou Claude Renoir.
Neste grupo todo de nomes, alguns se
destacam como faróis maiores desta corrente: o realizador Marcel Carné, o poeta
e dialoguista Jacques Prévert, o director de fotografia Curt Courant, o
cenógrafo Alexandre Trauner e o actor Jean Gabin. Todos reunidos em “Le Jour se
Lève”, um dos títulos mais carismáticos deste movimento.
Algumas das características fundamentais
do realismo poético são um contexto social onde abundam personagens populares,
operários, soldados, prostitutas, marginais, quase sempre enquadradas em
cenários urbanos, suburbanos, degradados, pesando sobre elas maldições,
destinos trágicos, fatalidades a que não se consegue fugir. A cidade é muitas vezes
mostrada como representação do mal e do vício, para o que conta muito a
organização do espaço arquitectónico, a iluminação, a bruma e o nevoeiro. Este
é um elemento que, vindo do expressionismo alemão, passa por França a caminho
dos EUA e do filme negro. Afinal um percurso de muitos cineastas que, fugindo
do nazismo em ascensão na Alemanha, passam pela Europa, em trânsito para
Hollywood.
Para terminar esta nota sobre o realismo
poético, diga-se ainda, que a sua influência foi manifesta, tanto no
neo-realismo italiano, como na nouvelle vague.
Quanto a “Le Jour se Lève”, de Marcel
Carné, este é um filme onde se podem observar todas as características atrás
enunciadas. Senão vejamos. Como protagonista, vamos
encontrar François
(Jean Gabin), um operário, um homem vigoroso e apaixonado, mas que nada diria
disposto à violência, apesar das difíceis condições do seu emprego. Recebe um
dia no seu modesto apartamento, num bairro popular de Paris, Valentin (Jules
Berry), que acaba assassinado com um tiro de pistola. O arranque do filme é
magnífico, iniciando-se com um plano em plongé sobre um carro de cavalos que
entra numa praça. A câmara vai acompanhando o percurso da carroça, descobrindo
lentamente o ambiente das ruas e da praça, mostrando a tranquilidade e
normalidade do que por ali se passa. Depois a câmara incide sobre um prédio de
seis andares, entramos pelas escadas que um cego vai subindo, ouve-se um grito,
“agora esticaste-te” alguém diz por detrás de uma porta que se abre e sai
Valentin, contorcendo-se até cair pelas escadas abaixo, parando junto ao cego
que sobe e descobre com a bengala que “aqui está um homem caído”. Corte para o
exterior, para a rua onde a polícia chega e os populares se vão juntado em
redor do prédio. Surgem os boatos: “Há um morto”. “Mataram um cego”. “Foi
suicídio”. “Coitado, cego, que é que esperam?”. Dois polícias sobem até ao
sexto andar, batem à porta. “Não abro! Vão-se embora! Não quero ver ninguém”. É
François que descobrimos agora, uma pistola na mão, acabou de disparar sobre a
porta. Os polícias retiram. Nas escadas, a multidão dispersa. Está definida a
acção de “Foi uma Mulher que o Perdeu”.
O que sucede de seguida é fácil de
resumir: um assassino barrica-se no seu apartamento de um sexto andar, num
bairro popular de Paris. Uma porta ao fundo do quarto, uma janela a deitar para
a rua. A polícia a rodear o imóvel. Os populares a encherem a praça
fronteiriça. François encurralado com um animal. Vai pensando no que fez, e em
tudo o que levou àquele desfecho. “Foi uma Mulher que o Perdeu” é o título em
português, que indica desde já uma pista. Será a correcta? “Le Jour se Lève”,
título original, pode traduzir-se por “nasce o dia”. Mais enigmático e poético.
François permanece enclausurado, a fumar cigarros enquanto os tem, empunhando
uma arma que coloca à defesa todos quantos o rodeiam. Vai rememorando a sua
vida com Clara (Arletty), assistente de Valentin no seu número de cães
amestrados. E todo o processo se desdobra. O destino, ou as condições sociais,
a fatalidade que parece perseguir alguns, ou a violência do dia a dia numa
sociedade competitiva, parecem absolver François, mas não as regras da justiça,
ou a consciência individual.
As interpretações, magníficas, sobretudo
de Jean Gabin, a realização e os diálogos que sublinham o lado poético do
contexto social, a fotografia e os cenários, fazem desta obra uma das mais
representativas do cinema francês do período de entre duas guerras. Uma obra
prima absoluta de uma corrente cinematográfica que teve uma influência decisiva
na história de todo o cinema que haveria de surgir depois.
FOI
UMA MULHER QUE O PERDEU
Título
original: Le jour se lève
Realização: Marcel Carné
(França, 1939); Argumento: Jacques Viot, Jacques Prévert (diálogos); Produção:
Jean-Pierre Frogerais; Música: Maurice Jaubert; Fotografia (p/b): Philippe
Agostini, André Bac, Albert Viguier, Curt Courant; Montagem: René Le Hénaff;
Design de produção: Alexandre Trauner; Guarda-roupa: Boris Bilinsky; Direcção
de Produção: Albert Brachet, Paul Madeux; Assistentes de realização: Pierre
Blondy, Jean Fazy; Som: Armand Petitjean; Companhia de produção: Productions
Sigma; Intérpretes: Jean Gabin
(François), Jules Berry (M. Valentin), Arletty (Clara), Jacqueline Laurent
(Françoise), Mady Berry (porteira), René Génin (porteiro), Arthur Devère (Mr.
Gerbois), René Bergeron (dono do café), Bernard Blier (Gaston), Marcel Pérès
(Paulo), Germaine Lix (cantora), Gabrielle Fontan, Jacques Baumer, Annie
Carriel, Léonce Corne, Georges Douking, Henry Farty, Georges Gosset, Robert Le
Ray, Albert Malbert, Marcel Melrac, André Nicolle, Guy Rapp, Max Rogerys,
Madeleine Rousset, Marcel Rouzé, Maurice Salabert, Claude Walter, etc. Duração: 93 minutos; Distribuição em
Portugal: NOS Audiovisuais; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia
em Portugal: 24 de Junho de 1943.
JEAN GABIN (1904-1976)
Jean Gabin, cujo nome de baptismo era
Jean Alexis Moncorgé, nasceu em Paris, França, a 17 de Maio de 1904, e haveria
de falecer, a15 de Novembro de 1976, em Neuilly-sur-Seine, com 72 anos. Foi o
mais popular e importante actor do cinema francês entre os anos 30, quando
iniciou a sua carreira, e os anos 60, quando atingiu um estatuto de vedeta
indiscutível. Começou por trabalhar como actor de teatro, em revistas e
operetas, antes de surgir no cinema, primeiro em curtas-metragens ainda mudas,
em 1930, como “L'héritage de Lilette” ou” Ohé! les valises”, “On demande un
dompteur” ou “Les lions”, ou ainda “Chacun sa chance”. Depois desenvolve uma
filmografia vasta, com mais de 95 títulos, trabalhando sob a direcção de alguns
dos maiores cineastas franceses (e internacionais) do seu tempo. “Les
bas-fonds”, “La grande illusion”, “La bête humaine” (de Jean Renoir), “Pépé le
Moko” (de Julien Duvivier), (de Jean Renoir), “Gueule d'amour!”, “Remorques”
(de Jean Grémillon), “Quai des brumes”, “Le jour se lève” (de Marcel Carné,
“Au-delà des grilles” (de René Clément) são alguns títulos importantes das
décadas de 30 e 40.
A partir dos anos 50, instala-se como o
“paxá” do cinema francês, criando personagens de polícias ou gangsters, de
grandes senhores dos negócios ou da política, em filmes que continuaram a
marcar o seu tempo: “Le plaisir”, “Touchez pas au grisbi”, “Napoléon”, “French
Cancan”, “Un singe en hiver”, “Le Chat”, “Le Pacha”, “La Traversée de Paris”,
“Les misérables”, “Maigret tend un piège”, “En cas de malheur”, “Le cave se
rebiffe”, “Mélodie en sous-sol”, “Maigret voit rouge”,
“Le soleil des voyous”, “Le pacha”, “Le
clan des Siciliens”, “Peau d'ane”, “Deux hommes dans la ville”, “Verdict”, entre
tantos outros, muitos dos quais dirigidos por realizadores da velha geração
contra a qual se insurgiram os novos talentos da “Nouvelle Vague”, Julien
Duvivier, Claude Autant-Lara, Jean-Paul Le Chanois, Jean Delannoy, Denys de La
Patellière, Henri Verneuil, Gilles Grangier, Pierre Granier-Deferre, André
Cayatte. O seu ultimo trabalho, de 1976, foi “L'année sainte”, de (de Jean
Girault. Trabalhou com quase todos os grandes nomes do teatro e do cinema
franceses, e uma das suas composições inesquecíveis foi a do Comissario
Maigret, personagem criada por Georges Simenon.
Principais
filmes do Realismo Poético
Sous
les toits de Paris, de René Clair (1930)
À
nous la liberté, de René Clair (1931)
Cœur
de lilas, de Anatole Litvak (1932)
14
Juillet, de René Clair (1933)
Liliom,
de Fritz Lang (1934)
L'Atalante,
de Jean Vigo (1934)
La
Kermesse héroïque, de Jacques Feyder (1935)
La
Belle Équipe, de Julien Duvivier (1936)
Pépé
le Moko, de Julien Duvivier (1937)
La Grande Illusion, de Jean
Renoir (1937)
Entrée
des artistes, de Marc Allégret (1938)
Le
Quai des brumes, de Marcel Carné (1938)
La
Bête humaine, de Jean Renoir (1938)
Le
jour se lève, de Marcel Carné (1939)
Le dernier tournant, de
Pierre Chenal (1939)
Remorques,
de Jean Grémillon (1941)
Les
Enfants du paradis, de Marcel Carné (1945)
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