terça-feira, 3 de janeiro de 2017

MACBETH


MACBETH (1947)

Depois dos atrasos na conclusão de “A Dama de Xangai”, Orson Welles volta a ganhar a reputação de não conseguir completar um filme dentro do prazo e orçamento. Respondendo a estas críticas, Welles propõe dirigir uma versão da peça de William Shakespeare, “Macbeth”, em apenas 21 dias de filmagens (ao contrário da habitual média de seis semanas). “Macbeth” cumpre prazos, mas a estranheza dos cenários criados não conquista grande entusiasmo na crítica nem no público. Insatisfeito, Welles parte para a Europa onde permanece exilado por um período de dez anos, até voltar a ser novamente convidado para trabalhar em Hollywood (“A Sede do Mal”).
“Macbeth” é um dos mais notáveis estudos da condição humana, observada sob o prisma da cobiça e da tentação do poder. Nos labirintos da intriga palaciana e da conspiração, Shakespeare desenha figuras que permanecem como símbolos de comportamentos humanos toldados pelos vícios mais despóticos. A febre de poder que conduz Lady Macbeth e Macbeth mantém-se de uma modernidade e exemplaridade notáveis.
Macbeth (Orson Welles) é um cavaleiro escocês que, vitorioso de mais uma campanha, regressa ao seu castelo na companhia de Banquo (Edgar Barrier), e encontra pelo caminho três bruxas que lhe auguram um futuro, segundo o qual ele virá a ser um dia Rei. Ao tomar conhecimento da profecia, Lady Macbeth (Jeanette Nolan), convence-se que esta será realizada, apesar do rei Duncan (Erskine Sanford) e do seu filho Malcolm (Roddy McDowall), ainda se encontrarem vivos.


Ao receber Duncan no seu castelo, Lady Macbeth planeia um hediondo crime e incita o seu marido a matar o Rei pondo as culpas nos guardas. Embora hesitante, Macbeth acaba por fazer a vontade da mulher. Incriminando os guardas com vestígios de sangue do Rei, Macbeth mata-os, sob o disfarce de uma falsa raiva contra os culpados.
Macduff (Dan O’Herlihy) ao descobrir que o Rei foi assassinado, suspeita de Macbeth - especialmente quando este reclama a coroa - e decide juntar-se a Malcolm em Inglaterra, para prepararem um contra-ataque. Entretanto, Macbeth toma conhecimento de que Macduff e Malcolm reúnem esforços para avançar sobre a Escócia. As bruxas previnem-no para ter cuidado com Macduff, mas sossegam-no ao dizer que Macbeth só será vencido quando “a floresta de Birnam avançar sobre o seu castelo”. Macbeth ordena a morte da mulher e filho de Macduff (Peggy Webber e Cristopher Welles), e prepara-se em seguida para a batalha.            
Lady Macbeth, entretanto, enlouquece e acaba por se suicidar. Os exércitos de Malcolm e Macduff avançam em direcção ao castelo, e ao aproximarem-se, disfarçam-se com ramos das árvores da floresta de Birgman e avançam protegidos pelo nevoeiro. Cumpre-se assim a profecia e Macbeth depara-se com “a floresta de Birnam a avançar sobre o seu castelo”.
A proposta de Orson Welles para realizar “Macbeth” não foi recebida com muito entusiasmo pelos grandes produtores. Vários estúdios temiam pela reputação de Welles - famoso pelos seus atrasos, além de que Shakespeare estava longe de ser um êxito comercial como obra adaptada ao cinema. As tentativas anteriormente conhecidas de trazer Shakespeare para o cinema tinham sido mal sucedidas em termos de audiências.
“Macbeth” tinha ainda o estatuto lendário de ser uma peça maldita, que trazia azar, tendo sido apenas filmada em cinema, em 1916, por Sir Herbert Beerbohm Tree. Orson Welles, apesar de tudo, não via nenhum preconceito em preparar a sua versão da peça. Esta tinha sido o primeiro grande sucesso da sua companhia, o Mercury Theater, numa celebrada e original versão “Voodoo” de Macbeth, em 1936.


Orson Welles chegou finalmente a acordo com a Republic Pictures para financiar o projecto e pôs mãos à obra desenhando e construindo - juntamente com Dan O’Herlihy (o actor que faz de Macduff) – um grande número de invulgares cenários, obtidos por um preço muito módico. Os actores seleccionados foram recrutados do grupo do Mercury Theater – que se encontrava justamente a encenar a peça – o que significou uma importante poupança de tempo nos ensaios. O papel de Lady Macbeth foi inicialmente pensado para ser representado por Agnes Moorehead, mas dada a indisponibilidade desta, ficou para Jeanette Nolan – a actriz que fazia o papel na altura, no Mercury Theater. Aparece também neste filme, a representar o único papel da sua vida, Cristopher Welles, a filha do primeiro casamento de Welles com Virginia Nicholson. Outro papel curioso, foi o dado ao argumentista, Charles Lederer, casado na altura com Virginia Nicholson, que representou uma das três bruxas.
Apesar do presidente da Republic Pictures, Herbert Yates, ter ficado satisfeito com o trabalho de Welles, a crítica não foi muito positiva, queixando-se muito da má qualidade do som, assim como do estilo visual escolhido. 
Welles rodou grande parte do filme utilizando uma atmosfera enevoada – em parte para esconder a pobre qualidade dos cenários, mas também para dar um forte tom teatral ao filme. Outra opção de Welles fortemente criticada foi a de ter posto os actores a representarem os seus papéis com uma forte pronuncia escocesa, obrigando a que o filme fosse cortado e a que algumas partes tivessem de ser dobradas (muitas por Welles). O filme original tem cerca de 107 minutos e está recuperado. A versão cortada e dobrada tem cerca de 89 minutos.


MACBETH
Título original: Macbeth
Realização: Orson Welles  (EUA, 1947); Argumento: Orson Welles (não creditado)  segundo uma peça de William Shakespeare; Música: Jacques Ibert; Fotografia (preto e branco): John L. Russel, William Bradford (segunda unidade); Montagem:  Louis  Lindsay; Direcção Artística: Fred A. Ritter;  Cenários: John Mccarthy Jr, James Redd; Guarda Roupa: Adele Palmer; Maquilhagem: Peggy Gray, Bob Mark; Som: Garry A. Harris, John Stransky Jr.; Efeitos Especiais: Howard Lydecker, Theodore Lydecker; Produtor Executivo: Charles K. Feldman; Produtor Associado: Richard Wilson; Produção: Orson Welles; Produtoras: Mercury Productions, Republic Pictures Corporation, Literary Classics Productions; Intérpretes: Orson Welles (Macbeth), Jeanette Nolan (Lady Macbeth), Dan O’Herlihy(Macduff), Roddy McDowall (Malcolm), Edgar Barrier(Banquo), Alan Napier (Espirito Santo), Erskine Sanford (Duncan), John Dierkes (Ross), Keene Curtis (Lennox), Peggy Webber (Lady Macduff/Bruxa), Lionel Braham (Siward), Archie Heugly (Jovem Siward), Jerry Farber (Fleance), Christopher Welles (filho de Macduff), Morgan Farley (Doutor), Lurene Tuttle (Mulher/Bruxa), Brainer Duffield(Primeiro assassino/Bruxa)),  William Alland (Segundo Assassino), George Chirello (Seyton), Gus Scilling (Um Carregador); Rodagem: estúdios da Republic (23 dias no verão de 1947 depois de 4 meses de ensaios); Duração: versão original – 107 min.; versão cortada por Welles - 89 min.; Estreia: 7 de Outubro de 1948; Distribução internacional: Republic Pictures Corp; Distribuição em Portugal: Filmes Castello Lopes (Portugal). Edição DVD: Costa do Castelo; Classificação etária: M / 12 anos.

ORSON WELLES (1915 - 1985)
Orson Welles nasceu em Kenosha, Wisconsin, E.U.A., a 6 de Maio de 1915. Apaixona-se muito cedo por Shakespeare e aos 5 anos de idade, diz a lenda, já conhece de cor excertos de algumas das suas peças, que encena com marionetes num pequeno teatrinho que lhe ofereceu o seu tutor, Dr. Bernstein (nome que curiosamente aparece, atribuído a outro tutor, em “O Mundo a Seus Pés”). Entre os oito e os dez anos, estuda tragédia, aprende desenho e exercita-se no ilusionismo (fala-se num encontro com Houdini). Aos doze anos funda, no colégio, um grupo teatral e pratica todos os desportos possíveis. Aos quinze, faz uma condensação das oito peças históricas de Shakespeare e recebe um prémio da Associação Dramática de Chicago por uma encenação de "Júlio César". Com 1,80 m de altura, aparece a fumar respeitáveis charutos e usa já monumentais chapéus. Aos dezasseis anos, apresenta-se na Irlanda como um dos "maiores actores americanos" e desempenha o papel do duque Alexandre de Wurttemberg (que tem a provecta idade de 80 anos) em "O Judeu Suss" e o do “Espectro” no "Hamlet".  Aos dezoito anos volta aos E.U.A., onde se lança na edição e ilustração das obras completas de Shakespeare; escreve uma biografia do herói abolicionista John Browne e parte para Marrocos e Espanha, onde se inicia na arte da tauromaquia. Aos dezanove anos, vemo-lo de novo na América, trabalhando como actor em "Romeu e Julieta" e como encenador em "As Três Irmãs", de Tchekov, e outras peças; casa-se então com a actriz Virgínia Nicholson, que lhe dá uma filha, baptizada com o nome masculino de Christofer. Em 1935-36, com a crise do teatro, inicia-se na rádio com a emissão quotidiana "March of Time", actualidades dramatizadas, onde empresta a voz a personalidades diversas, como Hitler, Mussolini ou Negus. Aos vinte e dois anos, graças ao apoio da administração Roosevelt, funda com John Houseman, o "Federal Theatre", onde encena um "Macbeth" inteiramente interpretado por negros. No ano seguinte, desaparecido o "Federal Theatre", funda o "Mercury Theatre", e continua, por outro lado a trabalhar na rádio, com uma emissão, “The Mercury Theatre on the Air”, na CBS, onde, a 30 de Outubro de 1938, adaptando "A Guerra dos Mundos", de Herbert-George Welles, fantasia uma reportagem da invasão do planeta Terra pelos marcianos, cujo realismo provoca um pânico indescritível na América. Mais tarde, adaptará dezenas de peças à rádio no programa “The Campbell Playhouse”, ainda na CBS.
Em 1939, com a desaparição do "Mercury Theatre", cede às solicitações de Hollywood e assina com a R.K.O. um contrato mirabolante: um filme por ano, de que poderia ser, conforme desejasse, produtor, realizador, argumentista, intérprete... ou tudo ao mesmo tempo. E ainda 25 por cento dos lucros brutos e 150 mil dólares para começar!  Depois surgem as tentativas malogradas de adaptar "Heart of Darkness", de Joseph Conrad, e "The Smiler With a Knife", segundo Nicholas Blake, que não leva por diante.
Entre 30 de Julho e 23 de Outubro de 1940, Orson Welles roda “Citizen Kane”, depois de ter passado um mês fechado numa sala de cinema, vendo e revendo obras de John Ford.  Depois, durante nove meses, com semanas de seis dias de trabalho, Welles monta este seu primeiro trabalho de realização. Tem 25 anos. A 1 de Maio de 1941, o filme é estreado e acolhido pela crítica de forma invulgarmente entusiástica. Mas o público não adere a esta obra que se mostra profundamente revolucionária para o seu tempo. Welles dinamitara as regras, estilhaçara a ideia clássica do cinema e, do alto da sua orgulhosa figura, contemplava o campo de batalha e os destroços que vogavam ainda ao sabor da tormenta. 
“Citizen Kane” não teve apenas o desfavor do público. Antes ainda de ser estreado, tivera já grandes dificuldades para ser exibido, porquanto descobriram na obra grandes afinidades entre a figura de Charles Foster Kane e a do magnate americano William Randolph Hearts, que controlava uma vasta cadeia de jornais ao longo de toda a terra americana, e que por todos os meios ao seu alcance tentou impedir a sua estreia.
Entretanto, continua a dedicar-se ao teatro e interessa-se pela ópera. Em 1942, ante a recusa da R.K.O. de o deixar produzir uma adaptação de "As Aventuras de Pickwick", realiza “O 4º. Mandamento” (The Magnificent Ambersons)", recebido ainda mais friamente do que “Citizen Kane”, depois do que parte para a América do Sul, onde impressiona 30.000 m de película, com vista a uma triologia sobre a Argentina, o Brasil e o México, que não chegam a ir nunca à sala de montagem. Só muito recentemente se recuperou parte desse material, que agora se pode ver sob a designação de “It's All True”. Sempre de mal a pior com a R.K.O., intervém ainda em “Jornada do Medo” (Journey into Fear), onde, contudo, figurará  como realizador Norman Foster. Em 1943, divorciado já, volta a casar-se (desta feita com Rita Hayworth), e dedica-se a espectáculos de "music-hall" e de magia para os soldados.  Em 1946, depois de interpretar vários filmes, volta à realização com “O Estrangeiro” (The Stranger), para em 1947, sob a pressão de dificuldades económicas, realizar “A Dama de Xangai” (The Lady from Shangai). Após este filme, rompe definitivamente com os grandes produtores de Hollywood, para realizar, em Inglaterra, com pouquíssimos recursos e em tempo mínimo, o seu primeiro filme shakespeariano: “Macbeth”. A este segue-se, em 1952, “Othelo”, rodado em Itália e no Norte de África, que conquista o Grande Prémio de Cannes. Em 1953 publica um romance satírico, “V.I.P”., cria o bailado "The Lady in the Ice", para Roland Petit, e intervém como intérprete em diversas películas. Logo depois, publica novo romance, “Mr. Arkadin”, que adapta ao cinema sob o nome de “Relatório Confidencial” (Confidential Report, 1954) e casa, pela terceira vez, desta feita com Paola Mori, condessa de Cifagio, e intérprete de “Mr. Arcadin”. 1956 marca o regresso a Hollywood, onde realiza o seu último filme para a Meca do Cinema: “A Sede do Mal” (Touch of Evil).  Em 1957, ainda um filme, mas desta vez, para a televisão: Don Quijote - segundo alguns, não a mais importante, mas uma das mais wellesianas de todas as suas obras, de que se conhece apenas uma versão montada por Jesus Franco, para a Expo 92 de Sevilha.
Em 1962, realiza na Europa (França e Jugoslávia) “O Processo”, uma adaptação de Frank Kafka. Em 1966, segundo diversas obras de William Shakespeare, dirige “Falstaff” (As Badaladas da Meia Noite), a que se segue, em 1969 “História Imortal” (The Immortal Story), um filme misterioso e poético, que tem (supostamente) Macau como cenário (foi rodado em Espanha). As suas derradeiras obras no cinema são “F for Fake”, sobre falsários de arte, e “Filming Othelo”, onde explica a conturbada rodagem do seu admirável “Othelo”.
Ao longo da sua carreira, interpretou dezenas de filmes, onde deixou igualmente o peso da sua personalidade e a força do seu génio, mas muitos deles não tinham grande qualidade nem o mereciam. Fazia-o para conseguir viver e financiar os seus projectos mais pessoais. Morreu a 9 de Outubro de 1985, deixando atrás de si uma lenda imorredoura, um legado disperso, incompleto e por vezes contraditório, que o apontam como um dos verdadeiros génios que o cinema conheceu.


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