MACBETH (1947)
Depois dos atrasos na conclusão de “A Dama de Xangai”, Orson Welles
volta a ganhar a reputação de não conseguir completar um filme dentro do prazo
e orçamento. Respondendo a estas críticas, Welles propõe dirigir uma versão da
peça de William Shakespeare, “Macbeth”, em apenas 21 dias de filmagens (ao
contrário da habitual média de seis semanas). “Macbeth” cumpre prazos, mas a
estranheza dos cenários criados não conquista grande entusiasmo na crítica nem
no público. Insatisfeito, Welles parte para a Europa onde permanece exilado por
um período de dez anos, até voltar a ser novamente convidado para trabalhar em
Hollywood (“A Sede do Mal”).
“Macbeth” é um dos mais notáveis estudos da condição humana, observada
sob o prisma da cobiça e da tentação do poder. Nos labirintos da intriga
palaciana e da conspiração, Shakespeare desenha figuras que permanecem como
símbolos de comportamentos humanos toldados pelos vícios mais despóticos. A
febre de poder que conduz Lady Macbeth e Macbeth mantém-se de uma modernidade e
exemplaridade notáveis.
Macbeth (Orson Welles) é um cavaleiro escocês que, vitorioso de mais uma
campanha, regressa ao seu castelo na companhia de Banquo (Edgar Barrier), e
encontra pelo caminho três bruxas que lhe auguram um futuro, segundo o qual ele
virá a ser um dia Rei. Ao tomar conhecimento da profecia, Lady Macbeth
(Jeanette Nolan), convence-se que esta será realizada, apesar do rei Duncan
(Erskine Sanford) e do seu filho Malcolm (Roddy McDowall), ainda se encontrarem
vivos.
Ao receber Duncan no seu castelo, Lady Macbeth planeia um hediondo crime
e incita o seu marido a matar o Rei pondo as culpas nos guardas. Embora
hesitante, Macbeth acaba por fazer a vontade da mulher. Incriminando os guardas
com vestígios de sangue do Rei, Macbeth mata-os, sob o disfarce de uma falsa
raiva contra os culpados.
Macduff (Dan O’Herlihy) ao descobrir que o Rei foi assassinado, suspeita
de Macbeth - especialmente quando este reclama a coroa - e decide juntar-se a
Malcolm em Inglaterra, para prepararem um contra-ataque. Entretanto, Macbeth
toma conhecimento de que Macduff e Malcolm reúnem esforços para avançar sobre a
Escócia. As bruxas previnem-no para ter cuidado com Macduff, mas sossegam-no ao
dizer que Macbeth só será vencido quando “a floresta de Birnam avançar sobre o
seu castelo”. Macbeth ordena a morte da mulher e filho de Macduff (Peggy Webber
e Cristopher Welles), e prepara-se em seguida para a batalha.
Lady Macbeth, entretanto, enlouquece e acaba por se suicidar. Os
exércitos de Malcolm e Macduff avançam em direcção ao castelo, e ao
aproximarem-se, disfarçam-se com ramos das árvores da floresta de Birgman e
avançam protegidos pelo nevoeiro. Cumpre-se assim a profecia e Macbeth
depara-se com “a floresta de Birnam a avançar sobre o seu castelo”.
A proposta de Orson Welles para realizar “Macbeth” não foi recebida com
muito entusiasmo pelos grandes produtores. Vários estúdios temiam pela
reputação de Welles - famoso pelos seus atrasos, além de que Shakespeare estava
longe de ser um êxito comercial como obra adaptada ao cinema. As tentativas
anteriormente conhecidas de trazer Shakespeare para o cinema tinham sido mal
sucedidas em termos de audiências.
“Macbeth” tinha ainda o estatuto lendário de ser uma peça maldita, que
trazia azar, tendo sido apenas filmada em cinema, em 1916, por Sir Herbert
Beerbohm Tree. Orson Welles, apesar de tudo, não via nenhum preconceito em
preparar a sua versão da peça. Esta tinha sido o primeiro grande sucesso da sua
companhia, o Mercury Theater, numa celebrada e original versão “Voodoo” de
Macbeth, em 1936.
Orson Welles chegou finalmente a acordo com a Republic Pictures para
financiar o projecto e pôs mãos à obra desenhando e construindo - juntamente
com Dan O’Herlihy (o actor que faz de Macduff) – um grande número de invulgares
cenários, obtidos por um preço muito módico. Os actores seleccionados foram
recrutados do grupo do Mercury Theater – que se encontrava justamente a encenar
a peça – o que significou uma importante poupança de tempo nos ensaios. O papel
de Lady Macbeth foi inicialmente pensado para ser representado por Agnes
Moorehead, mas dada a indisponibilidade desta, ficou para Jeanette Nolan – a
actriz que fazia o papel na altura, no Mercury Theater. Aparece também neste
filme, a representar o único papel da sua vida, Cristopher Welles, a filha do
primeiro casamento de Welles com Virginia Nicholson. Outro papel curioso, foi o
dado ao argumentista, Charles Lederer, casado na altura com Virginia Nicholson,
que representou uma das três bruxas.
Apesar do presidente da Republic Pictures, Herbert Yates, ter ficado
satisfeito com o trabalho de Welles, a crítica não foi muito positiva,
queixando-se muito da má qualidade do som, assim como do estilo visual
escolhido.
Welles rodou grande parte do filme utilizando uma
atmosfera enevoada – em parte para esconder a pobre qualidade dos cenários, mas
também para dar um forte tom teatral ao filme. Outra opção de Welles fortemente
criticada foi a de ter posto os actores a representarem os seus papéis com uma
forte pronuncia escocesa, obrigando a que o filme fosse cortado e a que algumas
partes tivessem de ser dobradas (muitas por Welles). O filme original tem cerca
de 107 minutos e está recuperado. A versão cortada e dobrada tem cerca de 89
minutos.
MACBETH
Título
original: Macbeth
Realização: Orson Welles (EUA, 1947);
Argumento: Orson Welles (não creditado)
segundo uma peça de William Shakespeare; Música: Jacques Ibert;
Fotografia (preto e branco): John L. Russel, William Bradford (segunda
unidade); Montagem: Louis Lindsay; Direcção Artística: Fred A.
Ritter; Cenários: John Mccarthy Jr,
James Redd; Guarda Roupa: Adele Palmer; Maquilhagem: Peggy Gray, Bob Mark; Som:
Garry A. Harris, John Stransky Jr.; Efeitos Especiais: Howard Lydecker,
Theodore Lydecker; Produtor Executivo: Charles K. Feldman; Produtor Associado:
Richard Wilson; Produção: Orson Welles; Produtoras: Mercury Productions,
Republic Pictures Corporation, Literary Classics Productions; Intérpretes: Orson Welles (Macbeth), Jeanette
Nolan (Lady Macbeth), Dan O’Herlihy(Macduff), Roddy McDowall (Malcolm), Edgar
Barrier(Banquo), Alan Napier (Espirito Santo), Erskine Sanford (Duncan), John
Dierkes (Ross), Keene Curtis (Lennox), Peggy Webber (Lady Macduff/Bruxa),
Lionel Braham (Siward), Archie Heugly (Jovem Siward), Jerry Farber (Fleance),
Christopher Welles (filho de Macduff), Morgan Farley (Doutor), Lurene Tuttle
(Mulher/Bruxa), Brainer Duffield(Primeiro assassino/Bruxa)), William Alland (Segundo Assassino), George
Chirello (Seyton), Gus Scilling (Um Carregador); Rodagem: estúdios da Republic (23 dias no verão de 1947 depois de 4 meses
de ensaios); Duração: versão
original – 107 min.; versão cortada por Welles - 89 min.; Estreia: 7 de Outubro de 1948; Distribução
internacional: Republic Pictures Corp; Distribuição em Portugal: Filmes
Castello Lopes (Portugal). Edição DVD: Costa do Castelo; Classificação
etária: M / 12 anos.
ORSON WELLES (1915
- 1985)
Orson Welles nasceu em Kenosha,
Wisconsin, E.U.A., a 6 de Maio de 1915. Apaixona-se muito cedo por Shakespeare
e aos 5 anos de idade, diz a lenda, já conhece de cor excertos de algumas das
suas peças, que encena com marionetes num pequeno teatrinho que lhe ofereceu o
seu tutor, Dr. Bernstein (nome que curiosamente aparece, atribuído a outro
tutor, em “O Mundo a Seus Pés”). Entre os oito e os dez anos, estuda tragédia,
aprende desenho e exercita-se no ilusionismo (fala-se num encontro com
Houdini). Aos doze anos funda, no colégio, um grupo teatral e pratica todos os
desportos possíveis. Aos quinze, faz uma condensação das oito peças históricas
de Shakespeare e recebe um prémio da Associação Dramática de Chicago por uma
encenação de "Júlio César". Com 1,80 m de altura, aparece a fumar
respeitáveis charutos e usa já monumentais chapéus. Aos dezasseis anos,
apresenta-se na Irlanda como um dos "maiores actores americanos" e
desempenha o papel do duque Alexandre de Wurttemberg (que tem a provecta idade
de 80 anos) em "O Judeu Suss" e o do “Espectro” no
"Hamlet". Aos dezoito anos
volta aos E.U.A., onde se lança na edição e ilustração das obras completas de
Shakespeare; escreve uma biografia do herói abolicionista John Browne e parte
para Marrocos e Espanha, onde se inicia na arte da tauromaquia. Aos dezanove
anos, vemo-lo de novo na América, trabalhando como actor em "Romeu e
Julieta" e como encenador em "As Três Irmãs", de Tchekov, e
outras peças; casa-se então com a actriz Virgínia Nicholson, que lhe dá uma
filha, baptizada com o nome masculino de Christofer. Em 1935-36, com a crise do
teatro, inicia-se na rádio com a emissão quotidiana "March of Time",
actualidades dramatizadas, onde empresta a voz a personalidades diversas, como
Hitler, Mussolini ou Negus. Aos vinte e dois anos, graças ao apoio da
administração Roosevelt, funda com John Houseman, o "Federal
Theatre", onde encena um "Macbeth" inteiramente interpretado por
negros. No ano seguinte, desaparecido o "Federal Theatre", funda o
"Mercury Theatre", e continua, por outro lado a trabalhar na rádio,
com uma emissão, “The Mercury Theatre on the Air”, na CBS, onde, a 30 de
Outubro de 1938, adaptando "A Guerra dos Mundos", de Herbert-George
Welles, fantasia uma reportagem da invasão do planeta Terra pelos marcianos,
cujo realismo provoca um pânico indescritível na América. Mais tarde, adaptará
dezenas de peças à rádio no programa “The Campbell Playhouse”, ainda na CBS.
Em 1939, com a desaparição do
"Mercury Theatre", cede às solicitações de Hollywood e assina com a
R.K.O. um contrato mirabolante: um filme por ano, de que poderia ser, conforme
desejasse, produtor, realizador, argumentista, intérprete... ou tudo ao mesmo
tempo. E ainda 25 por cento dos lucros brutos e 150 mil dólares para começar! Depois surgem as tentativas malogradas de
adaptar "Heart of Darkness", de Joseph Conrad, e "The Smiler
With a Knife", segundo Nicholas Blake, que não leva por diante.
Entre 30 de Julho e 23 de Outubro de
1940, Orson Welles roda “Citizen Kane”, depois de ter passado um mês fechado
numa sala de cinema, vendo e revendo obras de John Ford. Depois, durante nove meses, com semanas de
seis dias de trabalho, Welles monta este seu primeiro trabalho de realização.
Tem 25 anos. A 1 de Maio de 1941, o filme é estreado e acolhido pela crítica de
forma invulgarmente entusiástica. Mas o público não adere a esta obra que se
mostra profundamente revolucionária para o seu tempo. Welles dinamitara as
regras, estilhaçara a ideia clássica do cinema e, do alto da sua orgulhosa
figura, contemplava o campo de batalha e os destroços que vogavam ainda ao
sabor da tormenta.
“Citizen Kane” não teve apenas o
desfavor do público. Antes ainda de ser estreado, tivera já grandes
dificuldades para ser exibido, porquanto descobriram na obra grandes afinidades
entre a figura de Charles Foster Kane e a do magnate americano William Randolph
Hearts, que controlava uma vasta cadeia de jornais ao longo de toda a terra
americana, e que por todos os meios ao seu alcance tentou impedir a sua
estreia.
Entretanto, continua a dedicar-se ao
teatro e interessa-se pela ópera. Em 1942, ante a recusa da R.K.O. de o deixar
produzir uma adaptação de "As Aventuras de Pickwick", realiza “O 4º.
Mandamento” (The Magnificent Ambersons)", recebido ainda mais friamente do
que “Citizen Kane”, depois do que parte para a América do Sul, onde impressiona
30.000 m de película, com vista a uma triologia sobre a Argentina, o Brasil e o
México, que não chegam a ir nunca à sala de montagem. Só muito recentemente se
recuperou parte desse material, que agora se pode ver sob a designação de “It's
All True”. Sempre de mal a pior com a R.K.O., intervém ainda em “Jornada do
Medo” (Journey into Fear), onde, contudo, figurará como realizador Norman Foster. Em 1943,
divorciado já, volta a casar-se (desta feita com Rita Hayworth), e dedica-se a espectáculos
de "music-hall" e de magia para os soldados. Em 1946, depois de interpretar vários filmes,
volta à realização com “O Estrangeiro” (The Stranger), para em 1947, sob a
pressão de dificuldades económicas, realizar “A Dama de Xangai” (The Lady from
Shangai). Após este filme, rompe definitivamente com os grandes produtores de
Hollywood, para realizar, em Inglaterra, com pouquíssimos recursos e em tempo
mínimo, o seu primeiro filme shakespeariano: “Macbeth”. A este segue-se, em
1952, “Othelo”, rodado em Itália e no Norte de África, que conquista o Grande
Prémio de Cannes. Em 1953 publica um romance satírico, “V.I.P”., cria o bailado "The Lady in the Ice", para
Roland Petit, e intervém como intérprete em diversas películas. Logo depois,
publica novo romance, “Mr. Arkadin”, que adapta ao cinema sob o nome de
“Relatório Confidencial” (Confidential Report, 1954) e casa, pela terceira vez,
desta feita com Paola Mori, condessa de Cifagio, e intérprete de “Mr. Arcadin”.
1956 marca o regresso a Hollywood, onde realiza o seu último filme para a Meca
do Cinema: “A
Sede do Mal” (Touch of Evil). Em 1957, ainda um filme, mas desta vez, para a
televisão: Don Quijote - segundo alguns, não a mais importante, mas uma das
mais wellesianas de todas as suas obras, de que se conhece apenas uma versão
montada por Jesus Franco, para a Expo 92 de Sevilha.
Em 1962, realiza na Europa (França e
Jugoslávia) “O Processo”, uma adaptação de Frank Kafka. Em 1966, segundo
diversas obras de William Shakespeare, dirige “Falstaff” (As Badaladas da Meia
Noite), a que se segue, em 1969 “História Imortal” (The Immortal Story), um
filme misterioso e poético, que tem (supostamente) Macau como cenário (foi
rodado em Espanha). As suas derradeiras obras no cinema são “F for Fake”, sobre
falsários de arte, e “Filming Othelo”, onde explica a conturbada rodagem do seu
admirável “Othelo”.
Ao longo da sua carreira, interpretou
dezenas de filmes, onde deixou igualmente o peso da sua personalidade e a força
do seu génio, mas muitos deles não tinham grande qualidade nem o mereciam. Fazia-o
para conseguir viver e financiar os seus projectos mais pessoais. Morreu a 9 de
Outubro de 1985, deixando atrás de si uma lenda imorredoura, um legado
disperso, incompleto e por vezes contraditório, que o apontam como um dos
verdadeiros génios que o cinema conheceu.
Sem comentários:
Enviar um comentário