SCARFACE, O HOMEM DA CICATRIZ
(1932)
Este “Scarface” de 1932 é um
dos primeiros filmes de gangsters da história do cinema norte-americano e um
dos melhores até hoje. Assinado por Howard Hawks, com a colaboração de Richard
Rosson, parte de um argumento escrito a várias mãos por Ben Hecht, Seton I.
Miller, John Lee Mahin, W.R. Burnett, Howard Hawks e Fred Pasley, segundo
romance 1929, de Armitage Trail, com o mesmo nome ("Scarface"). A
obra literária, e consequentemente o filme, baseia-se na vida e na actividade
criminosa de Al Capone, sua ascensão e queda nos meios do crime de Chicago.
Estamos
nos anos 20, na América da “Proibição”, a América da Lei Seca decretada no
início dessa década com a intenção de afastar o país de problemas relacionados
com a pobreza e a violência, estabelecendo o governo, através da 18ª emenda, a
proibição da fabricação, comércio, transporte, exportação e importação de
bebidas alcoólicas. Uma lei que estaria em vigor até 1933. As consequências da
proibição foram as mais negativas. Em vez de se consumir álcool legalmente, com
criação de emprego legal e receitas fiscais, o que se conseguiu foi o
incremento da criminalidade a intensificação do gangsterismo, a fabricação de
bebidas ilegais, sem qualquer controle de qualidade, a corrupção, a ligação
mais do que suspeita das autoridades e das mafias locais, a disseminação de
bares clandestinos. É neste caldo social que surgem personagens como Al Capone
que, ainda por cima, criam lendas e multiplicam réplicas.
O cinema
norteamericano mostrou-se sempre muito interessado pelo mundo da criminalidade,
sendo às centenas os títulos que se ocupam, desde a década de 30 do século
passado, com gangsters e mafiosos. Muitos criminosos ganharam estatuto de
heróis nacionais, alguns por conseguirem triunfar nessa terra das
oportunidades, em épocas difíceis, outros por se equipararem a Robin dos
Bosques, roubando aos ricos (e aos bancos) para distribuir entre si e os mais
pobres. Outros ainda pela vida de uma marginalidade assumida, de transgressão
total, de oposição às forças da ordem. Al Capone, Dillinger, Frank Costello,
Lucky Luciano, Bonnie e Clyde, Vito Genovese, Joe Valachi, entre tantos outros,
estão neste quadro. Todos passaram pelas telas do cinema, quase sempre com sucesso
garantido. Não são só os americanos a vibrar com as façanhas dos mafiosos que
venceram e acabaram perdendo. Os filmes são êxitos mundiais.
Olhe-se
o caso de Al Capone, talvez o mais célebre de todos os gangsters da história
norte-americana. Para lá de Paul Muni, de que nos ocupamos agora, vários foram
os actores que o viveram nas telas internacionais, bastando citar alguns dos
nomes mais conhecidos (entre dezenas de outros passíveis de serem citados),
como Wallace Beery (“The Secret Six”, de George W. Hill, 1931), Barry Sullivan
(“The Gangster”, de Gordon Wiles, 1947), Rod Steiger (“Al Capone”, de Richard
Wilson, 1959), Neville Brand (“Nascido para a Violência”, de Joseph M. Newman,
1961), Jason Robards (“Massacre de Chicago”, de Roger Corman, 1967)), Ben
Gazzara (“Al Capone”, de Steve Carver, 1975)), Robert De Niro (“The
Untouchables”, de Brian De Palma, 1987) ou Anthony LaPaglia (“Road to
Perdition”, de Sam Mendes, 2002). Se observarmos mais detalhadamente,
descobriremos que muitos dos gângsteres, sobretudo os mais ligados à Mafia, são
de origem italiana. Não deixa de ser curioso verificar igualmente que alguns
dos cineastas que mais se têm dedicado a retratar as façanhas desses
protagonistas contam igualmente com uma herança italo-americana, de Coppola a
Scorsese. Há igualmente realizadores italianos que se interessaram pelo tema.
Afirma-se que Federico Fellini se terá inspirado na figura de Al Capone, para
compor os contornos de Antonio, no seu “Conto do Vigário”.
Regressemos
a
“Scarface:
The Shame of the Nation”, que terá sido um dos títulos a introduzir
definitivamente a temática do gangster no cinema norte-americano e a ser
considerado igualmente um dos precursores do “filme negro”. Na verdade, muitas
das dominantes do “filme negro” se encontram plasmadas nesta obra de Howard
Hawks, em particular o seu clima sombrio, o jogo do claro escuro, a dominância
de uma estética de um certo rebuscamento formal, para restituir um clima algo
patológico, e a quase ausência de forças da ordem, jogando-se (quase)= toda a
acção no interior dos gangs de mafiosos.
Na
década de 20, em Chicago, um emigrante italiano, "Tony" Camonte (Paul
Muni), às ordens de um chefe Mafioso, "Johnny" Lovo (Osgood Perkins)
assassina "Big" Louis Costillo (Harry J. Vejar), outro leader mafioso,
de uma região rival, o lado sul da cidade. Assim se inicia este fabuloso filme
de um impacto visual notável. Depois de uns planos do exterior de um
restaurante, após ter terminado uma festa, quando se recolhem os enfeites e se afasta
o lixo, a câmara de Hawks penetra no restaurante, onde ainda se encontram meia
dúzia de homens discutindo, entre eles
"Big" Louis Costillo, que se vangloria do seu poder e das
manifestações públicas do mesmo. Despedidas feitas, fica sozinho, avança para o
seu escritório, a câmara recua para o exterior, através de um vidro descobre-se
a silhueta de alguém que avança, sai de campo, ouvem-se uns tiros, e percebe-se
de imediato que Costillo deixou de ser “Big” é apenas um cadáver à espera que
alguém o substitua na hierarquia do crime. Luta de gangs rivais. Essa será a
temática de “Scarface”. "Tony" Camonte é o homem de mão de
"Johnny" Lovo, mas muito rapidamente percebe que ele próprio é que
devia comandar as operações. Ignora ordens do chefe e anula-o (eufemismo obvio)
tomando as rédeas do gang.
Entre
os colaboradores directos, Tony encontra-se Rinaldo (George Raft), seu homem da
máxima confiança até ao dia em que este se perde de amores pela irmã de Tony,
Cesca (Ann Dvorak). A partir daí Rinaldo torna-se outro alvo a abater, tanto
mais que Tony dedica irmã uma paixão doentia, roçando o incesto. O papel da
mulher nesta obra é extremamente interessante de observar. De um lado, Poppy
(Karen Morley), a companheira de "Johnny" Lovo e que passa, por algo
parecido com trespasse para Tony. Ela é a afirmação do poder de Tony, uma
espécie e coroa que objetiva o poder. Por outro lado, Cesca é a família donde
se provém, e um outro domínio que se afirma. A mulher funciona, portanto, em
qualquer dos casos como trofeu de caça, assunção do triunfo pessoal e social.
Este um dos aspectos muito curiosos deste filme que é interessante sob qualquer
prisma que se veja.
Esteticamente,
qualquer segmento reflete um domínio perfeito das potencialidades da imagem
como elemento gerador de significados. Howard Hawks vive ainda muito liado ao
cinema mudo que procurar traduzir emoções e situações unicamente como recurso à
imagem. “Sacarface” é, neste aspecto brilhante. Veja-se um novo exemplo: toda a
sequência do “Saint Valentine's Day Massacre” é brilhantemente conduzida e a
atmosfera dos anos 20 oferece-nos, não uma reconstituição (o filme é
praticamente contemporâneo, pois estreou em 1932), uma densidade e
credibilidade impressionantes. Respira-se a destilaria do álcool e o cheiro dos
tiroteios.
Em1983,
Brian De Palma recriou este título, com Al Pacino.no papel principal, com
idêntico sucesso. O que nos leva a voltar a trás e referir igualmente o
trabalho de Paul Muni na composição da figura de "Tony" Camonte, um
homem que impõe lentamente o seu poder através da violência, que não olha a
meios para atingir os fins, que oscila entre uma histeria patológica e uma
serenidade programada, que explode de ciúmes quando descobre os amores da irmã
que ele secretamente ama e deseja, que reage às contradições com a raiva
estampada no rosto. A legenda final, perante a morte do protagonista, não podoa
ser mais irónica: “O MUNDO É SEU”. O que relembra um outro final, com a morte
do gangster no cimo de uma terre metálica que explode. “Mama,
iama in the top of the Word!” (James Cagney em “Fúria Sanguinária”, de Raoul
Walsh, 1949).
Obviamente
que um filme que tratava de forma tão realista a violência, o gangsterismo, e
assumia sugestões tão declaradas ao incesto, iria ter problemas com a censura.
O código Hays surgira em 1930, para por cobra aos ditos exageros que a
indústria cinematográfica disseminava na sociedade ianque e nas plateias de
todo o mundo. Mas só entraria em funções plenas em 1934. Acontece que
“Scarface” foi violentamente repreendido pela “glorificação da vida de um
gangster”, e os argumentistas foram pressionados para alterar algumas cenas.
Umas foram, nomeadamente o final, outras não, dado que o produtor, o
multimilionário Howard Hughes, ordenou ao realizador: "Screw the Hays
Office, make it as realistic, and grisly as possible".
Para
atenuar o efeito “realista” do filme, foi colocada no início do mesmo uma
legenda que não deixa de ser curiosa: “Este filme é uma denuncia da lei dos
gangs na América e da insensível indiferença do governo perante esta crescente
ameaça à nossa segurança e liberdade. Os factos narrados baseiam-se em eventos
reais e a finalidade deste filme é perguntar ao governo o que vão fazer em
relação a isto? O governo foi escolhido por si. O que vai fazer em relação a
isto?” Portanto, perante este texto, o filme fica ilibado do que quer que seja
e o ónus dos acontecimentos passa para o governo que permite que tal acontece.
SCARFACE, O HOMEM DA CICATRIZ
Título original: Scarface ou Scarface: The Shame of
the Nation ou Scarface: The Shame of a Nation
Realização: Howard
Hawks, Richard Rosson (EUA, 1932); Argumento: Ben Hecht, Seton I. Miller, John
Lee Mahin, W.R. Burnett, Howard Hawks, Fred Pasley, segundo romance de Armitage
Trail ("Scarface"); Produção: Howard Hawks, Howard Hughes; Música:
Adolph Tandler; Fotografia (p/b): Lee Garmes, L. William O'Connell; Montagem:
Edward Curtiss, Lewis Milestone; Decoração: Harry Oliver; Direcção de Produção:
Charles Stallings; Som: William Snyder; Efeitos visuais: Howard A. Anderson;
Companhia de produção: The Caddo Company; Intérpretes:
Paul Muni (Tony), Ann Dvorak (Cesca), Karen Morley (Poppy), Osgood Perkins
(Johnny Lovo), C. Henry Gordon (Inspector Guarino), George Raft (Rinaldo),
Vince Barnett (Angelo), Boris Karloff (Tom Gaffney), Purnell Pratt, Tully Marshall,
Inez Palange, Edwin Maxwell, Henry Armetta, Gus Arnheim, Eugenie Besserer,
Maurice Black, William Burress, Gino Corrado, Virginia Dabney, William B.
Davidson, James Durkin, Eddie Fetherston, Paul Fix, Francis Ford, Gus Arnheim
and His Orchestra, Jean Harlow (loura no Paradise Club), Howard Hawks (homem na
cama), Brandon Hurst, John Kelly, John Lee Mahin, Hank Mann, Dennis O'Keefe,
Jack Perry, Pedro Regas, Warner Richmond, Constantine Romanoff, Bert Starkey,
Charles Sullivan, Harry Tenbrook, Helen C. Thompson, Nick Thompson, Ellinor
Vanderveer, Harry J. Vejar, Sailor Vincent, Douglas Walton, etc. Duração: 93 minutos; Distribuição em Portugal: Agencia
Cinematográfica H. da Costa, Lda (cinema); (DVD); Universal; Classificação
etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: São Luiz, 13 de Dezembro de
1932.
PAUL
MUNI
(1895-1967)
Paul
Muni, cujo nome de baptismo era Meshilem Meier Weisenfreund, nasceu em Lemberg,
então uma localidade do império austro-húngaro (presentemente Ucrânia), a 22 de
Setembro de 1895 e veio a falecer em Montecito, Califórnia, EUA, em 25 de
Agosto de 1967. Foi um actor muito popular entre os anos 30 e 40, tendo assegurado
trabalhos notáveis que lhe valeram nomeações para o Oscar de Melhor Actor em
1930, 1934, 1936, 1937, 1938 e 1960. Venceu em 1937, pela sua interpretação de
Louis Pasteur no filme “The Story of Louis Pasteur”, de 1935. Com este título
ganhou igualmente a Volpi no Festival de Veneza de 1936. Em 1956 recebeu Tony
Award de melhor ator dramático em teatro, por “Inherit the Wind”, uma produção
da Broadway. Dedicaram-lhe uma estrela no Passeio da Fama, em 6435 Hollywood
Blvd.
Para lá
do seu trabalho em “Sacrface”, são ainda de sublinhar as contribuições em “I Am
a Fugitive from a Chain Gang” (Eu Sou um Evadido), de Mervyn LeRoy (1932), “The
World Changes” (O Mundo Não Pára), de Mervyn LeRoy (1933), “Hi, Nellie!”
(Mataram), de Mervyn LeRoy (1934), “Bodertown” (Um Vencido da Vida), de Archie
Mayo (1935), “The Story of Louis Pasteur” (A Vida de Pasteur), de William
Dieterle (1935), “Dr. Socrates”, de William Dieterle (1935), “Black Fury”
(Fúria Negra), de Michael Curtiz (1935), The Good Earth (Terra Bendita), de Sidney
Franklin, Victor Fleming (1937), “The
Life of Emile Zola” (A Vida de Zola), de William Dieterle (1937), “The Woman I
Love”, de Anatole Litvak (1937), “Juarez” (A Derrocada de um Império), de
William Dieterle (1939), “We Are Not Alone” (Não Estamos Sós), de Edmund
Goulding (1939), “Commandos Strike at Dawn” (Os Comandos Atacam ao Amanhecer),
de John Farrow (1942), “Counter-Attack”
(Contra-Ataque), de Zoltan Korda (1945), “A Song to Remember” (Chopin Imortal),
de Charles Vidor (1945), “Angel on My Shoulder” (Passaporte Para o Inferno), de
Archie Mayo (1946), “Imbarco
a mezzanotte” (O Homem Esquecido), de Joseph Loseu (1952), e, finalmente, seu
derradeiro filme, “The Last Angry Man” (A última ira), de Daniel Mann (1959).
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