JUBAL
(1956)
Na história do western os anos 50 foram
particularmente interessantes, por várias razões. Antes da indicação “western”
ser corrente, como designação de certo peso cultural, existiam os “filmes de
cowboys”, muito populares durante a época do mudo e até meados da década de 30.
Até aqui tudo era muito claro e maniqueísta, havia os bons e os maus,
normalmente os brancos e os pretos na cor dos fatos e dos cavalos, mas também
por vezes na cor da pele. Mas, quanto à diferenciação rácica, havia sobretudo
distinção entre os brancos e os vermelhos (sem sequer haver associação política
à cor, mas sim aos peles-vermelhas).
Depois o western começou a impor-se com
outra importância artística e cultural, entrou-se na época dos grandes
clássicos, como “Stagecoach”, de John Ford, e tantos outros. A introdução do
sonoro permitiu uma maior complexidade das intrigas e começaram-se a discutir
temas importantes, de um ponto de vista histórico e social. Mas em finais da
década de 40 e durante todos os anos 50 o western ganhou uma nova dimensão, por
vários motivos. O incremento das ideias de Freud e da psicanálise, que entraram
abertamente no território norte-americano, a emancipação da mulher, depois do
esforço imposto pela II Guerra Mundial, e a guerra fria, o macartismo e todas
as consequências decorrentes destes fenómenos contaminaram o western com temas,
ideias, figuras, situações que não eram muito populares até aí.
Para caracterizar estas posições
assumidas pelos autores de westerns na década de 50 podemos socorrermo-nos das
palavras de Barthémely Amengual (um dos grandes especialistas do género, in
“lmage et Son”, n. 97, 1956), escritas por essa altura: “Neo-western,
sur-western, anti-westem, western romanesco... a crítica não sabe como baptizar
(ou definir) o western contemporâneo (ia a dizer adulto, o que seria injurioso
para os antigos êxitos ...)”. Ou ainda de André Bazin (in “Cahiers du Cinéma”,
n. 054, 1955): “Chamarei convencionalmente sur-western ao conjunto das formas
adaptados pelo género, no pós-guerra. Mas não procurarei dissimular que a
expressão vai soçobrar pela necessidade de exposição de fenómenos nem sempre
comparáveis. Ela pode, no entanto, justificar-se negativamente por oposição ao
classicismo dos anos 40 e, sobretudo, à tradição de que é a resultante. Digamos
que o sur-western é um western que teria vergonha de ser ele mesmo e procurasse
justificar a sua existência por um interesse suplementar: de ordem estética,
sociológica, moral, psicológica, política, erótica..., logo, por qualquer valor
extrínseco ao género e que se supõe vir enriquecê-lo.”
Estas palavras dão bem a medida do que
foi o western do pós-guerra. O classicismo dos anos anteriores cede o lugar à
heterodoxia, conjugando elementos de índole diversa com a tradição e a
mitologia próprias do género. O que não pode deixar de ser significativo de uma
nova mentalidade. O western deixou de ser considerado um terreno puro, “intoxicou-se”
(no dizer de Nuno Portas, num texto relativo a “Johnny Guitar”). Recusada a
pureza original, viu-se contaminado por intenções várias. “O Comboio Apitou
Três Vezes” (1953), de Fred Zinnemann, é um bom exemplo deste período fértil em
obras de corajosa denúncia racial, política (reacção ao macarthismo,
nomeadamente), social e moral. No entanto, uma das obras mais frisante desta
época de transição é indubitavelmente “Shane” (1953), de George Sleven. As
interferências externas prolongam-se, entrando por campos até aí pouco
explorados. Surgem os primeiros casos de erotismo na história do filme do Oeste
em certa medida como consequência da inflação da “pin up” durante a guerra. Uma
progressão irreversível que vai do próprio “A Terra dos Homens Perdidos”, de
Howard Hughes e Hawks ao “Rio sem Regresso” (1954), de Otto Preminger, passando
pelo paroxismo de um “Duelo ao Sol”, de Vídor,
Convém, no entanto, fazer notar dentro
desta mesma tendência moderna do western duas vias possíveis de
desenvolvimento: uma que vai ao encontro de toda a mitologia do género e que a
enriquece de dentro (com cineastas como Howard Hawks, Nicholas Ray, Anthonny
Mann, Raoul Walsh ... ) e uma outra, onde essa intoxicação se processa do
exterior, ou seja, como imposição prévia (neste caso estão autores como Fred
Zinnemann, John Sturges, Robert Aldrich, Richard Brooks, Delmer Daves, entre
outros). Enquanto um western de Anthony Mann não seria pensável senão sob a
forma western, o mesmo não sucederia em relação a “O Comboio Apitou Três
Vezes”, “Lança Quebrada” ou “Vera Cruz”. Os problemas centrais deste
neo-western ultrapassam o género e situam-se a um nível de debate de ideias e
conceitos que se poderiam igualmente equacionar num policial ou “filme negro”,
numa comédia ou num austero filme de tese.
De qualquer forma, e quer a aludida
intoxicação se processe de dentro para fora ou inversamente, o que está em
causa é a consciencialização dos cineastas norte-americanos que, passada que
foi (com mágoa) a época liberal do “New-Deal”, se encontraram a braços com uma
América inesperadamente em crise, crise que não é só económica, mas igualmente
social, moral, politica, psicológica, afectada profundamente pela desilusão do
pós-guerra e pela realidade da guerra fria. Afinal, uma nova crise em que
valores antigos deixam de se ajustar a realidades presentes. Desse desajuste
nasce esse novo western, moderno em relação aos valores clássicos, que pode ser
testemunhado, entre muitos outros, em títulos como “Johnny Guitar” (Ray, 1953),
“Esporas de Aço” (Mann, 1952), “O Homem Que Veio de Longe” (Mann, 1954), “Céu
Aberto” (Hawks, 1951), “A Lança Quebrada” (Dmytryck, 1954), “Homem sem Rumo”
(Vidor, 1954), “A Última Caçada” (Brooks, 1955) ou “Jubal” ou “O Comboio das 3
e 10” (Daves, 1956 e 1957).
Entramos, portanto, no caso muito
especifico de “Jubal” que se apoia, nada mais nada menos, do que numa peça teatral
de Shakespeare, ou mesmo nas óperas de Gioachino Rossini ou Giuseppe Verdi,
para não falar de tantas outras formas de arte que se inspiraram na tragédia do
famoso general árabe de Veneza. A história é sabida de todos, tão popular é:
Othello, casado com Desdémona, tem em Cassio, um fiel ajudante, e em Iago, um
rival intriguista e desleal. Vingando a promoção de Cassio, que considera
injusta, inventa uma traição deste, acusando-o de amores adúlteros com
Desdémona, o que irá provocar uma terrível tragédia. Um tema eterno que coloca
em causa temas como o ciúme, o amor, a traição, a vingança e, no caso de
Shakespeare, o racismo.
O filme de Delmar Daves anula o caso do
racismo, pois todos os protagonistas são brancos, mas mantem tudo o resto em
equação, partindo de um romance de Paul Wellman, o próprio Daves e Russell S.
Hughes adaptaram. Em lugar do tema racismo, Daves acerca-se de um conflito que
já fizera parte central de “Shane”: a luta entre os grandes barões do gado e os
pequenos proprietários ou criadores de porcos ou ovelhas. Tudo se passa em
Jackson Hole, em Wyoming, onde Jubal Troop (Glenn Ford) aparece, vindo não se
sabe de onde, mas cai nas graças de Shep Horgan (Ernest Borgnine), um
fazendeiro bem-humorado e generoso, que lhe oferece trabalho e hospitalidade.
Quem não se mostra tão afectuoso é Pinky (Rod Steiger), que gostaa de ser o
preferido de Shep e vê a sua posição vacilar perante a chegada de Jubal. Tanto
mais que Mae ((Valerie French)), a jovem mulher de Shep, parece igualmente
preferir Jubal a Pinki, na sua necessidade evidente de afecto e algo mais. O
resto é “Othello” adaptado ás pradarias do Oeste, com inteligência, critério e
um excelente esboço social e humano a suportar a intriga.
Delmer Daves (1904–1977) é um cineasta
particularmente interessante, nem sempre devidamente avaliado. Repartiu grande
parte das suas obras entre o western e o melodrama, e nos dois campos, assinou
obras de referência. Depois de um início de carreira onde tocou um pouco em todas
as teclas dos géneros (“Rumo a Tóquio”, 1943; “Sonho em Hollywood”, 1944; “Uma Luz nas
Trevas”, 1945; “A Casa Vermelha”, 1947; e esse magnifico “O Prisioneiro do
Passado”, 1947, com Humphrey Bogart), Delmer Daves passou a dividir,quase
exclusivamente, a sua filmografia por westerns líricos, vibrantes, sensuais e
românticos (“A Flecha Quebrada”, 1950;
“A Última Caravana” e “Jubal”, 1956; “O Comboio das 3 e 10”, 1957;
“Cowboy - Como Nasce Um Bravo” e “Os Homens das Terras Bravas”, 1958; ou “Raízes
de Ouro”, 1959) e melodramas se exasperado sentimentalismo, mas sempre
dirigidos com rigor e contensão, numa linha que se aproxima muito do mestre
deste género, Douglas Sirk (“Carne da Minha Carne” e “Bonecas de Carne”, 1961;
“Escândalo ao Sol”, 1959; “Viver é o que Importa”, 1962, “Febre de Viver”,
1964; ou “Escândalo em Villa Fiorita”, 1975).
Jubal é um filme que
demonstra muitas das qualidades do cinema apaixonado e vigoroso de Delmer
Daves, um homem que gosta de explorar os grandes espaços naturais, mas
igualmente mestre no aproveitamento de interiores, onde se encerram muitos dos
seus conflitos. Cenários de cores quentes, onde as paixões explodem ou se
controlam e as emoções se atiçam são a base para excelentes actores se
exercitarem, por vezes com métodos e formas de representar diversos, o que
torna ainda mais aliciante o seu confronto. Glenn Ford, Ernest Borgnine, Rod Steiger,
Valerie French, Charles
Bronson, Jack Elam, Felicia Farr, Noah Beery, Jr., ou Basil Ruysdael são
magnificos nas suas composições, assim como são de ressalvar a bela fotografia
de Charles Lawton Jr. e a partitura musical de David Raksin.
JUBAL
Título
original: Jubal
Realização: Delmer Daves
(EUA, 1956); Argumento: Russell S. Hughes, Delmer Daves, segundo romance de
Paul Wellman; Produção: William Fadiman; Música: David Raksin; Fotografia
(cor): Charles Lawton Jr.; Montagem: Al Clark; Direcção artística: Carl
Anderson; Decoração: Louis Diage; Guarda-roupa: Jean Louis; Maquilhagem: Clay Campbell, Helen Hunt;
Assistentes de realização: Eddie Saeta; Som: John P. Livadary, Harry Smith;
Companhias de produção: Columbia Pictures Corporation; Intérpretes: Glenn Ford (Jubal Troop), Ernest Borgnine (Shep
Horgan), Rod Steiger ('Pinky' Pinkum), Valerie French (Mae Horgan), Felicia
Farr (Naomi Hoktor), Basil Ruysdael (Shem Hoktor), Noah Beery Jr. (Sam - Horgan Rider), Charles Bronson (Reb Haislipp),
John Dierkes (Carson), Jack Elam (McCoy), Robert Burton (Dr. Grant), John L.
Cason, Michael Daves, Juney Ellis, Don C. Harvey, Robert 'Buzz' Henry, Larry
Hudson, Robert Knapp, Ann Kunde, William Rhinehart, etc. Duração: 100 minutos; Distribuição em Portugal:
Columbia Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: Cinema
Império, 23 de Junho de 1957.
GLENN FORD (1916-2006)
Glenn Ford, de nome de baptismo Gwyllyn
Samuel Newton Ford, nasceu a 1 de Maio de 1916, no Quebeque, Canadá, e faleceu
a 30 de Agosto de 2006, com 90 anos, em Beverly Hills, Califórnia, EUA. Filho
de um executivo ferroviário, com oito anos de idade muda-se para Santa Mónica,
na Califórnia, e torna-se cidadão americano em 1939. Estudou na High School de
Santa Mónica, e estreia-se como actor aos 19 anos. Integra várias companhias,
até chegar à Broadway. Contratado pela 20th Century Fox, passa para a Columbia,
onde roda cerca de 50 filmes em 18 anos, sobretudo western de pequeno orçamento
e de realizadores medianos. Passa pelos US Marines Corps, durante a II Guerra
Mundial e, de regresso, integra-se no elenco da Columbia, onde assegura um
lugar destacado. A partir de “Gilda” a sua áurea aumenta e durante alguns anos
tentam reeditar o êxito da dupla Hayworth-Ford, sem nunca atingir a intensidade
do original. Mas interpretou muitos e bons papéis, dirigido por grandes
cineastas, como Fritz Lang, Richard Brooks, Vincente Minnelli, e manteve uma
clientela fiel, tanto no cinema, como posteriormente na televisão. Envelheceu
mal, dado ao álcool e a irascibilidade. Ao receber um prémio, concedido por uma
revista da especialidade, protagonizou um episódio infeliz: recusou-se sentar
ao lado de um outro actor, negro. Casado
com Eleanor Powell (1943-1959), Kathryn Hays (1966-1969), Cynthia Hayward
(1974-1977) e Jeanne Baus (1993-1994). Teve ainda conhecidas ligações com Zsa
Zsa Gabor, Hope Lange, Rita Hayworth, Connie Stevens, Joan Crawford, Dinah
Shore, Brigitte Bardot, Debbie Reynolds, María Schell, Linda Christian, Judy
Garland, entre outras, que não acabaram em casamento. Glenn Ford sofreu de
problemas cardíacos durante a fase final da sua vida. Ganhou um Globo de Ouro,
em 1962, pelo seu desempenho em “Pocketful of Miracles”. Tem uma estrela no
“Passeio da Fama”, em 6933 Hollywood Blvd.
Filmografía (principais filmes): 1939:
My Son Is Guilty (O Filho de um Gangster), de Charles Barton; 1940: The Lady in
Question (Acusada, Levante-se!), de Charles Vidor; 1941: So Ends Our Night
(Regresso a Berlim), de John Cromwell; 1941: Texas (Texas), de George Marshall;
1943: The Desperadoes (Bandidos), de Charles Vidor; 1943: A Stolen Life (Uma
Vida Roubada), de Curtis Bernhardt; 1946: Gilda (Gilda), de Charles Vidor; 1948:
The Loves of Carmen (Amores de Carmen), de Charles Vidor; 1948: The Man From
Colorado (Pena de Talião), de Henry Levin; 1949: Lust for Gold (Oiro Maldito),
de S. S. Simon; 1952: Affair in Trinidad (Calypso, a Feiticeira da Ilha), de
Vincent Sherman; 1953: The Man from Alamo (Invasores), de Budd Boetticher;
1953: The Big Heat (Corrupção), de Fritz Lang; 1953: Appointment in Honduras
(Encontro nas Honduras), de Jacques Tourneur; 1954: Human Desire (Desejo
Humano), de Fritz Lang; 1955: The Americano (O Americano), de William Castle; 1955:
The Violent Men (Homens Violentos), de Rudolph Maté; 1955: The Blackboard
Jungle (Sementes de Violência), de Richard Brooks; 1955: Interrupted Melody
(Melodia Interrompida), de Curtis Bernhardt; 1955: Trial (A Fúria dos Justos),
de Mark Robson; 1956: Jubal (Jubal), de Delmer Daves; 1956: The Teahouse of the
August Moon (A Casa de Chá do Luar de Agosto), de Delbert Mann; 1957: 3:10 to
Yuma (O Comboio das 3 e 10), de Delmer Daves; 1958: Cowboy (Cowboy, Como Nasce
um Bravo), de Delmer Daves; 1958: The Sheepman (O Irresistível Forasteiro), de
George Marshall; 1960: Cimarrón (Cimarron), de Anthony Mann; 1961: Pocketful of
Miracles (Milagre por um Dia), de Frank Capra; 1962: The Four Horsemen of the
Apocalypse (Os Quatro Cavaleiros do Apocalipso), de Vincente Minnelli; 1962:
Experiment in Terror (Uma Voz na Escuridão), de Blake Edwards; 1963: The
Courtship of Eddie's Father (As Noivas do Papá), de Vincente Minnelli; 1964:
Dear Heart (Uma Vida por Viver), de Delbert Mann; 1966: The Money Trap (A
Tentação do Dinheiro), de Burt Kennedy; 1966: Paris Brûle-t-il? (Paris Já Está
a Arder?), de René Clément; 1968: Day of the Evil Gun (A Pistola do Mal), de
Jerry Thorpe; 1969: Heaven with a Gun (À Mão Armada), de Lee H. Katzin; 1976:
Midway (Batalha de Midway), de Jack Smight; 1978: Superman (Super-Homem), de
Richard Donner; 1991: Raw Nerve, de David A. Prior; 1991 (último trabalho):
Final Verdict (TV).
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