TAXI
DRIVER (1976)
Um par de olhos arregalados e surpresos olham
a realidade que os rodeia. É uma cidade em estado de sítio. Uma grande
metrópole em frenesim. Noite. Ruas iluminadas por néons, dísticos
publicitários, transeuntes que passam, apressados a furtarem-se à chuva, nuvens
de vapor que se soltam dos respiradouros do metropolitano, jactos de água
jorrando das bocas-de-incêndio desregularizadas. Táxis amarelos sulcando esta
noite que se diria saída de um purgatório bruegheleano. E a música de Bernard
Hermann, que se solta como um lamento dorido saído das entranhas da terra. Esta
é a Nova Iorque de Martin Scorsese, que já a havia retratado anteriormente em
“Os Cavaleiros do Asfalto” e que, posteriormente, muitas vezes voltaria a ela.
Uma Nova Iorque inesquecível, que atrai e repele, que fascina e assusta.
O protagonista deste pesadelo é Travis Bickie
(Robert De Niro), vinte e seis anos, fuzileiro regressado do Vietname com baixa
honrosa, o que o leva a arranjar uma licença de taxista. Travis tem um rosto de
miúdo, um sorriso tímido, um ar desconfiado, um trauma de todo o tamanho que
lhe não permite fechar os olhos e dormir. Passa as noites a vaguear pela
cidade, a pé ou em autocarros, vê filmes pornográficos em cinemas decrépitos,
bebe cervejas e deixa-se invadir por uma revolta profunda. Deseja a chuva como
dádiva dos céus, uma chuva que lave todas as imundices das ruas. O táxi
traz-lhe um horário das seis da tarde às seis da manhã (às vezes mais). É duro,
mas permite esquecer, estar “ocupado”. À noite “os animais saem das tocas,
putas fedorentas, bichas, traficantes morais, ladrões corruptos…”
Travis faz pontaria com o seu táxi para
passar por baixo de um jacto de água. É a forma de se lavar de tanta sujeira.
“Um dia a tempestade limpará essa nojeira”. Quando termina o seu turno, às
vezes tem de lavar o esperma e o sangue do banco traseiro. Travis continua a
não dormir. Ele “só quer saber o caminho a seguir. Ninguém deve viver neste
isolamento mórbido”. Aparece então a sede de campanha de um candidato que
afirma que “nós somos o povo!” No staf da campanha, a bela Betsy (Cybill
Shepherd), no seu imaculado vestido branco, é a imagem de um anjo redentor.
Será esse o candidato que vai limpar a cidade? Puxar a “descarga desta
latrina”?
O pesadelo da noite nova-iorquina continua.
Um passageiro leva-o a espreitar por uma janela, onde se recorta uma silhueta
de mulher. Depois de algum tempo de espera, o passageiro confessa que irá matar
a adúltera com uma Magnum 44. Travis,
cada vez mais deprimido, procura o conselho do “sábio” (Peter Boyle). O caminho
parece estar encontrado. Compra armas e prepara o corpo. Tem de ter os músculos
em ordem. Nada de vida sedentária. Exercício. Travis desafia-se a si próprio.
Desdobra-se ao espelho. “You talking to me?”
Nas ruas sombrias de Manhattan uma miúda de
doze anos, Iris (Jodie Foster), prostitui-se. O seu “protector”, “Sport”
(Harvey Keitel), tenta passá-la a Travis. Ali se encontra mais um exemplo de
uma pureza pervertida. Travis vai registando, somando, deixando a raiva
crescer. Até que um dia haverá de rebentar, de exorcizar-se num acto de
violência total. Aí se irá jogar o futuro deste taxista, herói ou vilão desta
história, uma entre centenas de outras, de seres impelidos para a violência por
acontecimentos da sua vida privada ou da sua experiência social. A guerra do
Vietname é neste caso uma explicação para o trauma que marca a existência de
Travis. Mas muitas outras motivações podem explicar massacres que diariamente
ocorrem um pouco por todo o lado. O
facto de Travis poder ser olhado como um herói torna ainda mais angustiante
este filme onde o cidadão comum toma nas suas mãos a execução da justiça (que
interpreta e concretiza segundo critérios próprios, logo eminentemente
discutíveis).
Por tudo isso,”Taxi Driver” surge-nos como um
dos retratos mais impressionantes da década de 70, no cinema norte-americano,
ao lado de alguns outros que abordam o tema da desilusão nos valores da
democracia norte-americana. Depois de uma época de certa revitalização de
valores, nos anos 60, o período que se lhe seguiu foi nitidamente um desmontar
da feira, o fim das ilusões, o desmanchar dos sonhos. “Taxi Driver” é um
retrato fulgurante desse momento de desalento individual e colectivo. Se
existem por essa altura vários filmes onde se abordam temas dramáticos e
soturnos para a sociedade ianque, “Taxi Driver” parece organizá-los como uma
antologia de horrores, da violência ao sexo desbragado, das drogas à solidão e
ao desespero existencial, da corrupção estrutural ao caos urbano. Travis é o
reflexo, a resposta objectiva a toda esta panóplia de argumentos em busca do
comportamento mais reacionário e anti-social.
Um argumentista calvinista (que também é
grande realizador), Paul Schrader, e um realizador católico, Martin Scorsese,
cozinham esta obra que assume toda a complexidade religiosa, do crime ao
castigo, da culpa à expiação. Este bailado trágico pelas artérias de uma grande
cidade, pelas obsessões da noite, é regido com a precisão, o rigor, a
meticulosidade de um inspirado orquestrador de movimentos, de cores, de sons,
de respirações. O filme é uma obra-prima onde cada elemento desaparece sob a
força do conjunto, mas onde cada contributo é objectivamente de uma importância
decisiva, do já referido argumento de Paul Schrader à fotografia de Michael
Chapman, da montagem de Tom Rolf e Melvin Shapiro à direcção artística de
Charles Rosen, da fabulosa mistura sonora até à fulgurante composição musical
de Bernard Herrmann que, após assinar os últimos acordes desta partitura, nos
deixava para sempre, felizmente na companhia de algumas das mais espantosas
bandas sonoras para cinema.
Se tecnicamente a obra é empolgante, não o
será menos a magnífica interpretação de um elenco que ficará também ele para a
História. Robert De Niro, ainda muito jovem, indeciso entre a timidez e a
afirmação de uma violência vitalista, é brilhante. Travis é uma composição que
não se esquece. Cybill Shepherd, Jodie Foster, Peter Boyle, Harvey Keitel,
Leonard Harris, Albert Brooks, Martin Scorsese, cada um no seu registo, criam
uma galeria de tipos que definem curiosos aspectos da sociedade
norte-americana.
Scorsese é, certamente, um dos retratistas
mais seguros da América no que esta tem de mais típico, para o bem e para o
mal. Com “Taxi Driver” terá atingido um dos seus momentos de maior perfeição e
clarividência. O filme ficará para sempre como um farol a iluminar a noite e a
indicar, sem maniqueísmos, o perigo de comportamentos associais. E de
populismos revanchistas. Uma América que continua dividida entre Trump, Clinton
ou Sanders.
TAXI
DRIVER
Título
original: Taxi Driver
Realização: Martin Scorsese
(EUA, 1976); Argumento: Paul Schrader; Produção: Phillip M. Goldfarb, Julia
Phillips, Michael Phillips; Música: Bernard Herrmann; Fotografia (cor): Michael
Chapman; Montagem: Tom Rolf, Melvin Shapiro; Casting: Juliet Taylor; Direcção
artística: Charles Rosen; Decoração: Herbert F. Mulligan; Guarda-roupa: Ruth
Morley; Maquilhagem: Irving Buchman,
Mona Orr, Dick Smith; Direcção de Produção: Phillip M. Goldfarb; Assistentes de realização: Robert P. Cohen,
William Eustace, Peter R. Scoppa, Ralph S. Singleton; Departamento de arte: Leslie Bloom, David
Nichols, Cosmo Sorice, Carter Stevens; Som: Rick Alexander, Gordon Davidson,
James Fritch, Sam Gemette, David M. Horton, Les Lazarowitz, Roger Pietschmann,
Vern Poore, Robert Rogow, Tex Rudloff, Frank E. Warner; Efeitos especiais: Tony
Parmelee; Companhias de produção: Columbia Pictures Corporation, Bill/Phillips,
Italo/Judeo Productions; Intérpretes:
Robert De Niro (Travis Bickle), Cybill Shepherd (Betsy), Jodie Foster
("Easy", Iris Steensma), Peter Boyle ("Wizard"), Harvey
Keitel ("Sport"), Leonard Harris (Senador Charles Palantine), Albert
Brooks (Tom), Martin Scorsese (passageiro do táxi de Travis), Victor Argo (dono
de mercado), Steven Prince ("Easy Andy", vendedor ilegal de armas),
Diahnne Abbott, Frank Adu, Gino Ardito, Garth Avery, Harry Cohn, Copper
Cunningham, Brenda Dickson, Harry Fischler, Nat Grant, Richard Higgs, Beau
Kayser, Victor Magnotta, Bob Maroff, Norman Matlock, Bill Minkin, Murray
Moston, Harry Northup, Gene Palma, Harlan Cary Poe, Peter Savage, Nicholas
Shields, Ralph S. Singleton, Joe Spinell, Maria Turner, Robin Utt, Tommy
Ardolino, Joseph Bergmann, William Donovan, Jean Elliott, Annie Gagen, Trent
Gough, Carson Grant, Mary-Pat Green, Robert John Keiber, James Mapes, Debbi
Morgan, Billie Perkins, Don Stroud, Frankie Verroca, etc. Duração: 113 minutos; Distribuição em Portugal: Columbia Filmes;
Classificação etária: M/ 18 anos; Data de estreia em Portugal: 15 de Abril de
1977.
ROBERT DE NIRO (1943 - )
Robert Anthony De
Niro Jr. Nasceu
em Nova Iorque, a 17 de Agosto de 1943, filho de Virginia Holton Admiral,
pintora e poeta, e Robert De Niro Sr., pintor expressionista abstracto e
escultor. Robert De Niro tem assim ascendência italiana, irlandesa, inglesa,
alemã, francesa e holandesa, tanto por parte de pai como mãe. Mas a ascendência
italiana é dominante, tanto mais que os bisavós, Giovanni De Niro e Angelina
Mercurio, emigraram de Ferrazzano, da provincia de Campobasso, Molise. Com os
pais divorciados, foi criado pela mãe em Little Italy, Manhattan, e Greenwich
Village. Frequentou uma escola primária pública de Manhattan, e depois a
privada Elisabeth Irwin High School. Andou por outras escolas, mantendo sempre
o seu grupo de amigos de rua de Little Italy, Parece que a sua primeira
experiencia teatral foi uma representação escolar de “O Feiticeiro de Oz” (era
o leão medroso). Aos 16 anos abandona a escola mas ingressa no Stella Adler
Studio of Acting e, depois, no Actors Studio, de Lee Strasberg.Em 1963,
estreia-se no cinema, pela mâo de Brain de Palma “The Wedding Party” (Festa de
Casamento), filme que só se estrearia em 1969. Por isso surgem como filmes
iniciais seus “Trois chambres à Manhattan” (Três quartos em Nova Iorque), em
1965, e “Greetings”, de Brain De Palma, em 1968. Prinicipiava assim uma notável
carreira como actor, mas também como argumentista, realizador, produtor, que se
pode comprovar na filmografia em anexo, onde se assinalam os seus principais
títulos. Nela, fica bem visível a sua particulra amizade com Brian De Palma e
Martin Scorsese.
Filmografia
/Principais filmes: 1964: The Wedding Party (Festa de Casamento), de Brian De
Palma: (filme só estreado em 1969); 1965: Trois Chambres à Manhattan (Três
Quartos em Manhattan), de Marcel Carné; 1968: Greetings, de Brain De Palma; 1970:
Bloody Mama (O Dia da Violência), de Roger Corman; Hi, Mom! de Brian De Palma;
1973: Mean Streets (Os Cavaleiros do Asfalto), de Martin Scorsese; 1973: Bang
the Drum Slowly (Toca o Tambor Devagar) de John D. Hancock; 1974: The
Godfather: Part II (O Padrinho: Parte II), de Francis Ford Coppola; 1976: Taxi
Driver (Táxi Driver), de Martin Scorsese; he Last Tycoon (O Último Magnata), de
Elia Kazan; 1900, de Bernardo Bertolucci; 1977: New York, New Yorkk, de Martin
Scorsese; 1978: The Deer Hunter (O Caçador), de Michael Cimino; 1980: Raging
BullO (Touro Enraivecido), de Martin Scorsese;1983: The King of Comedy (O Rei
da Comédia), de Martin Scorsese; 1984: Once Upon a Time in America (Era Uma Vez
na América), de Sergio Leone; 1984: Falling in Love (Encontro com o Amor),
de Ulu Grosbard; 1985: Brazil (Brazil: O
Outro Lado do Sonho), de Terry Gilliam; 1986. The Mission (A Missão), de Roland
Joffé; 1987: Angel Heart (Nas Portas do Inferno), de Alan Parker; The
Untouchables (Os Intocáveis), de Brain de Palma; 1988: Midnight Run (Fuga à
Meia-Noite), de Martin Brest; 1989: We're No Angels (Ninguém é Santo), de Neil
Jordan; 1990: Awakenings (Despertares), de Penny Marshall; Goodfellas (Tudo
Bons Rapazes), de Martin Scorsese; Stanley & Iris (Para Iris com Amor), de
Martin Ritt; 1991: Guilty by Suspicion (Na Lista Negra) de Irwin Winkler;
Backdraft (Mar de Chamas), de Ron
Howard; 1992: Cape Fear (O Cabo do Medo), de Martin Scorsese; 1993: A Bronx
Tale (Um Bairro em Nova Iorque), de Robert De Niro; Mad Dog and Glory (Uma
Mulher entre Dois Homens), de John
McNaughton; This Boy's Life (A Vida deste Rapaz), de Michael Caton-Jones; 1994:
Mary Shelley's Frankenstein (Frankenstein), de Kenneth Branagh; 1995: Heat
(Cidade sob Pressão), de Michael Mann; Casino (Casino), de Martin Scorsese;
1996: Sleepers (Sentimento de Revolta), de Barry Levinson; Jackie Brown (Jackie
Brown); de Quentin Tarantino; Wah the Dog (Manobras na Casa Branca), de Barry
Levinson; 1998: Ronin (Ronin), de John Frankenheimer; Great Expectations
(Grandes Esperanças), de Alfonso Cuarón; 1999: Analyze This (Uma Questão de Nervos),
de Harold Ramis; Meet the Parents (Um
Sogro do Pior), de Jay Roach; 2001: 15 Minutes (15 Minutos), de John Herzfeld;
The Score (Sem Saída), de Frank Oz; 2006: The Good Shepherd (O Bom Pastor), de
Robert De Niro; 2009: Everybody's Fine (Estão Todos Bem), de Kirk Jones; 2010:
Machete, de Ethan Maniquis, Robert
Rodriguez; 2100: Limitless (Sem Limites), de Neil Burger; 2012: Silver Linings
Playbook (Guia para um Final Feliz), de David O. Russell; 2013: Malavita, de Luc
Besson; Last Vegas (Last Vegas - Despedida de Arromba), de Jon Turteltaub;
American Hustle (Golpada Americana), David O. Russell; Grudge Match (Grudge
Match: Ajuste de Contas), de Peter Segal; 2015: The Intern (O Estagiário), de
Nancy Meyers; 2016: Hands of Stone (Mãos de Pedra), de Jonathan Jakubowicz;
2018: The Irishman, de Martin Scorsese (em preparação).
Principais prêmios: Oscar: venceu: The Godfather: Part II (1974), The Deer
Hunter (1978), Raging Bull (1980), Awakenings (1990); nomeações: Silver Linings
Playbook (2012), Cape Fear (1991), Taxi Driver (1976). Ganhou ainda diversos
Globos de Ouro e algumas nomeações; BAFTAS; Berlin, David di Donatello Awards,
Hollywood Film Awards, Karlovy Vary International Film Festival, Los Angeles
Film Critics Association Awards, Moscow International Film Festival, New York
Film Critics Circle Awards, San Sebastián International Film Festival, Sarajevo
Film Festival, Taormina International Film Festival, Venice Film Festival e
muitos outros. È um dos actores mais remiados de sempre.
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