sábado, 31 de dezembro de 2016

O OFICIO DE MATAR


O OFÍCIO DE MATAR (1967)

O código de honra dos samurais japoneses, conhecido por “bushidô”, continua a ser respeitado e admirado no Japão, mas influenciou igualmente muitas obras de arte ocidentais, nomeadamente no cinema, onde se destaca precisamente este “Le Samurai”, do francês Jean-Pierre Melville, interpretado por Alain Delon, numa das melhores criações da sua longa filmografia.
Miyamoto Musashi, que, além de ser considerado um dos maiores samurais de sempre (senão mesmo o maior), escreveu ainda um tratado de guerra e de conduta moral,O Livro dos Cinco Anéis”, disse um dia: “Os homens devem moldar o seu caminho. A partir do momento em que alguém vir o caminho em tudo o que fizer, esse alguém tornar-se-á o caminho.” O samurai, para lá da coragem e heroísmo das suas acções, da força e do rigor da sua disciplina, seguia um código rígido de conduta, o bushidô ou “O Caminho do Guerreiro”, um conjunto de regras que para o samurai tinham mais força do que as próprias leis do estado. Para quem seguia o bushidô, o objetivo da vida era uma morte honrosa. Um dos seus principais preceitos era saber que “o verdadeiro samurai só tem um juiz da sua honra: ele mesmo. As escolhas que fizer e como fizer para as obter são um reflexo de quem realmente se é”.
Tudo isto a propósito de “Le Samurai”, filme, que tem como protagonista Jef Costello (Alain Delon), um assassino contratado que executa as encomendas com o maior pragmatismo e frieza. Não há qualquer tipo de sentimento ou emoção no trabalho que efectua. Vive na maior solidão. “Não há mais profunda solidão que a do samurai, a não ser talvez a do tigre na selva”, volta-se a citar um pensamento de samurai, precisamente a frase com que se inicia o filme de Jean-Pierre Melville.  Jef é contratado para matar o dono de um cabaret. Acaba preso, a policia incluiu-o num grupo de suspeitos. Algumas testemunhas, porém, não conseguem (ou não querem) identifica-lo como o autor dos disparos. É posto em liberdade, mas agora vive acossado pela polícia, que continua desconfiada, e pelos mandantes do assassinato, que o julgam perigoso. Assim se descobre na solidão mais completa, assim se encontra o caminho para um final honroso.
Jean-Pierre Melville (1917–1973) é um cineasta singular, autor de uma obra inclassificável. Começou a sua filmografia em finais da década de 40, com a adaptação do romance de Vercors, “Le silence de la mer” (1949), continuando com Jean Cocteau, “Les enfants terribles” (1950) e depois “Quando Leres Esta Carta” (1953). A partir de 1956, com “Bob le flambeur”, entra no universo do gangsterismo, que prolongará em “Dois Homens em Manhattan” (1959). Por essa época, a Nouvelle Vague irrompia pelo cinema francês, destruindo tudo o que ficava para trás, com algumas excepções: Renoir, Vigo, Breson, Tati, Melville. Este tornou-se não um elemento da Nouvelle Vague (nunca pretendeu estar associado a qualquer movimento, ele era também um solitário, com um caminho próprio a percorrer), mas um companheiro de caminho dos jovens da renovação da cinematografia francesa. Aparece como actor nalguns dos filmes mais marcantes desse movimento, como “O Acossado”, de Godard, “Le Signe du Lion”, de Éric Rohmer, “O Duelo na Ilha”, de Alain Cavalier, ou “Landru”, de Claude Chabrol. A sua obra extremamente pessoal prossegue com “Amor Proibido”, incursão pelo universo do clero, para depois se centrar no policial a rondar o filme negro: “O Denunciante”, “Um Homem de Confiança” (ambos de 1963), “O Segundo Fôlego” (1966), “Ofício de Matar” (1967), “O Exército das Sombras” (1969), “O Círculo Vermelho” (1970) e, finalmente, “Cai a Noite Sobre a Cidade” (1972).


“Ofício de Matar” é uma obra extremamente coerente na sua construção narrativa e na sua concepção estética. Desde logo, a cor escolhida, um cinzento esverdeado, distante e frio, que pode relembrar a sela do tigre solitário. Depois, a arquitectura escolhida como cenário vai no mesmo sentido, quer se trate do quarto de Jef, das vielas onde troca de matrícula do carro, e dos ambientes mais sofisticados de bares e habitações de luxo. Em todos o mesmo desconforto, a mesma aridez. O tipo de representação que se escolheu indica igualmente essa intenção. Alain Delon ostenta um rosto impassível, um olhar glacial, um comportamento minucioso. Um gesto de alguma emoção apenas para com o pássaro da gaiola que guarda no quarto, ou para com a namorada, Jane Lagrange (na verdade a mulher de Delon, Nathalie Delon), ou a pianista de cabaret (Cathy Rosier). Mas se há alguma emoção no olhar em certas cenas, logo sobrevem a secura do comportamento e o despojamento dos sentimentos.
Jean-Pierre Melville domina completamente os meios utilizados e escolhe os melhores para cumprir o seu destino de samurai. Melville era um cinéfilo apaixonado. Para ele, fazer cinema era um acto de amor. E amava perdidamente o cinema norte-americano dos anos 40 e 50, sobretudo o filme negro que aqui tão bem homenageia, criando, todavia, um estilo muito próprio. Personagens e situações para Melville são arquétipos, símbolos, num cenário não realista, estilizado, quase abstrato. Assim construiu “Le Samurai”, que muitos estudiosos do seu cinema consideram uma obra-prima e o primeiro sinal do amadurecimento total do seu estilo que depois continuaria em títulos como “O Exército das Sombras” ou “O Círculo Vermelho”.



O OFÍCIO DE MATAR
Título original: Le samouraï
Realização: Jean-Pierre Melville (França, Itália, 1967); Argumento: Jean-Pierre Melville, Georges Pellegrin, segundo romance de Joan McLeod ("The Ronin"); Produção: Raymond Borderie, Eugène Lépicier; Música: François de Roubaix; Fotografia (cor): Henri Decaë; Montagem: Monique Bonnot, Yolande Maurette; Design de produção: François de Lamothe; Decoração: François de Lamothe; Direcção de Produção: Georges Casati; Assistentes de realização: Georges Pellegrin; Departamento de arte: André Boumedil, Robert Christidès, Angelo Rizzi; Som: René Longuet, Robert Pouret, Alex Pront; Companhias de produção: Compagnie Industrielle et Commerciale Cinématographique (CICC), Fida Cinematografica, Filmel, TC Productions; Intérpretes: Alain Delon (Jef Costello), François Périer (Comissário da policia), Nathalie Delon (Jane Lagrange), Cathy Rosier (pianista), Jacques Leroy (o homem na passerelle), Michel Boisrond (Wiener), Robert Favart (barman), Jean-Pierre Posier (Olivier Rey), Catherine Jourdan, Roger Fradet, Carlo Nell, Robert Rondo, André Salgues, André Thorent, Jacques Deschamps, Georges Casati, Jacques Léonard, Pierre Vaudier, Maurice Magalon, Gaston Meunier, Jean Gold, Georges Billy, Ari Aricardi, Guy Bonnafoux, Humberto Catalano, Carl Lechner, Maria Maneva, etc. Duração: 105 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Cine Digital; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 3 de Novembro de 1968.            

ALAIN DELON (1935- )
Alain Delon nasceu em Sceaux, na Borgonha, próximo de Paris. Aos quatro anos, viu os pais, Edith e Fabian, divorciarem-se. Foi então adoptado por um casal, que pouco depois seria assassinado. Volta para junto da mãe, entretanto já casada com outro homem, e enfrenta uma infância problemática, com expulsões de várias escolas. Aos 15 anos deixa de estudar e, dois anos depois, alista-se na marinha francesa, indo lutar na Indochina. Em 1956, regressa a Paris, sem posses, arranja vários empregos, porteiro, garçon, vendedor. Vizinho da cantora Dalida, tornam-se grandes amigos. Em 1957, no Festival de Cannes, onde foi com o amigo Jean-Claude Brialy, chama a atenção do produtor David O. Selznick, que lhe ofereceu um contrato, mas tem de aprender a falar inglês. Entretanto conhece o realizador Yves Allégret, que o convenceu a começar sua carreira na França. Em 1957 interpreta o seu primeiro filme, “Quand la Femme s'en Mele”. Em “Christine” conhece  Romy Schneider, e ambos se apaixonam. Em 1959, foram morar juntos, relacionamento que durou cinco anos.
O seu primeiro grande papel no cinema foi em “Plein Soleil”, de René Clément (1959), que lhe abre as portas para o sucesso. Seguem-se vários títulos importantes, “Rocco e Seus Irmãos” (1960), de Luchino Visconti, com quem volta a trabalhar em “O Leopardo” (1963). Delon é, por essa altura, um sex symbol do cinema europeu, mas igualmente um actor reconhecido, que trabalha com grandes cineastas, como Michelangelo Antonioni, em “O Eclipse”, Jean-Pierre Melville, em “Le Samouraï” (1967), “O Círculo Vermelho” (1970) e “Cai a Noite Sobre a Cidade” (Un flic, 1971), Valerio Zurlini, em “Outono Escaldante” (1972), Joseph Losey, em “O Assassinato de Trotsky” (1972) e” Mr. Klein” (1976) ou Jean-Luc Godard, em “Nouvelle Vague” (1990). Interpretou mais de uma centena de títulos, e afastou-se do cinema, em finais dos anos 90. Apenas surgiu num ou outro trabalho de TV.

Em 1964, casou-se com a atriz Nathalie Delon, e separaram-se em 1969. Depois teve um longo relacionamento com a actriz Mireille Darc. Durante o período em que estava casado com Nathalie, ocorreu um escândalo. Em 1968, um dos seus guarda-costas, Stevan Markovic, foi assassinado e Delon viu-se envolvido no caso. Em 1987 conhece a modelo holandesa Rosalie Van Bremen, e passam a viver juntos. Separam-se em 2001 e Delon conhece um período de depressão que o leva a considerar o suicídio. Em 2012 sofreu um AVC.

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