O OFÍCIO DE MATAR (1967)
O
código de honra dos samurais japoneses, conhecido por “bushidô”, continua a ser
respeitado e admirado no Japão, mas influenciou igualmente muitas obras de arte
ocidentais, nomeadamente no cinema, onde se destaca precisamente este “Le
Samurai”, do francês Jean-Pierre Melville, interpretado por Alain Delon, numa
das melhores criações da sua longa filmografia.
Miyamoto
Musashi, que, além de ser considerado um dos maiores samurais de sempre (senão
mesmo o maior), escreveu ainda um tratado de guerra e de conduta moral, “O Livro dos Cinco Anéis”, disse
um dia: “Os homens devem moldar o seu caminho. A partir do momento em que
alguém vir o caminho em tudo o que fizer, esse alguém tornar-se-á o caminho.” O
samurai, para lá da coragem e heroísmo das suas acções, da força e do rigor da
sua disciplina, seguia um código rígido de conduta, o bushidô ou “O Caminho do
Guerreiro”, um conjunto de regras que para o samurai tinham mais força do que
as próprias leis do estado. Para quem seguia o bushidô, o objetivo da vida era
uma morte honrosa. Um dos seus principais preceitos era saber que “o verdadeiro
samurai só tem um juiz da sua honra: ele mesmo. As escolhas que fizer e como
fizer para as obter são um reflexo de quem realmente se é”.
Tudo
isto a propósito de “Le Samurai”, filme, que tem como protagonista Jef Costello
(Alain Delon), um assassino contratado que executa as encomendas com o maior
pragmatismo e frieza. Não há qualquer tipo de sentimento ou emoção no trabalho
que efectua. Vive na maior solidão. “Não há mais profunda solidão que a do
samurai, a não ser talvez a do tigre na selva”, volta-se a citar um pensamento
de samurai, precisamente a frase com que se inicia o filme de Jean-Pierre
Melville. Jef é contratado para matar o
dono de um cabaret. Acaba preso, a policia incluiu-o num grupo de suspeitos.
Algumas testemunhas, porém, não conseguem (ou não querem) identifica-lo como o
autor dos disparos. É posto em liberdade, mas agora vive acossado pela polícia,
que continua desconfiada, e pelos mandantes do assassinato, que o julgam
perigoso. Assim se descobre na solidão mais completa, assim se encontra o
caminho para um final honroso.
Jean-Pierre
Melville (1917–1973) é um cineasta singular, autor de uma obra inclassificável.
Começou a sua filmografia em finais da década de 40, com a adaptação do romance
de Vercors, “Le silence de la mer” (1949), continuando com Jean
Cocteau, “Les enfants terribles” (1950) e depois “Quando Leres Esta Carta”
(1953). A partir de 1956, com “Bob le flambeur”, entra no universo do
gangsterismo, que prolongará em “Dois Homens em Manhattan” (1959). Por essa
época, a Nouvelle Vague irrompia pelo cinema francês, destruindo tudo o que
ficava para trás, com algumas excepções: Renoir, Vigo, Breson, Tati, Melville.
Este tornou-se não um elemento da Nouvelle Vague (nunca pretendeu estar
associado a qualquer movimento, ele era também um solitário, com um caminho
próprio a percorrer), mas um companheiro de caminho dos jovens da renovação da
cinematografia francesa. Aparece como actor nalguns dos filmes mais marcantes
desse movimento, como “O Acossado”, de Godard, “Le Signe du Lion”, de Éric
Rohmer, “O Duelo na Ilha”, de Alain Cavalier, ou “Landru”, de Claude Chabrol. A
sua obra extremamente pessoal prossegue com “Amor Proibido”, incursão pelo
universo do clero, para depois se centrar no policial a rondar o filme negro:
“O Denunciante”, “Um Homem de Confiança” (ambos de 1963), “O Segundo Fôlego”
(1966), “Ofício de Matar” (1967), “O Exército das Sombras” (1969), “O Círculo
Vermelho” (1970) e, finalmente, “Cai a Noite Sobre a Cidade” (1972).
“Ofício
de Matar” é uma obra extremamente coerente na sua construção narrativa e na sua
concepção estética. Desde logo, a cor escolhida, um cinzento esverdeado,
distante e frio, que pode relembrar a sela do tigre solitário. Depois, a
arquitectura escolhida como cenário vai no mesmo sentido, quer se trate do
quarto de Jef, das vielas onde troca de matrícula do carro, e dos ambientes
mais sofisticados de bares e habitações de luxo. Em todos o mesmo desconforto,
a mesma aridez. O tipo de representação que se escolheu indica igualmente essa
intenção. Alain Delon ostenta um rosto impassível, um olhar glacial, um
comportamento minucioso. Um gesto de alguma emoção apenas para com o pássaro da
gaiola que guarda no quarto, ou para com a namorada, Jane Lagrange (na verdade
a mulher de Delon, Nathalie Delon), ou a pianista de cabaret (Cathy Rosier).
Mas se há alguma emoção no olhar em certas cenas, logo sobrevem a secura do
comportamento e o despojamento dos sentimentos.
Jean-Pierre
Melville domina completamente os meios utilizados e escolhe os melhores para
cumprir o seu destino de samurai. Melville era um cinéfilo apaixonado. Para
ele, fazer cinema era um acto de amor. E amava perdidamente o cinema norte-americano
dos anos 40 e 50, sobretudo o filme negro que aqui tão bem homenageia, criando,
todavia, um estilo muito próprio. Personagens e situações para Melville são
arquétipos, símbolos, num cenário não realista, estilizado, quase abstrato.
Assim construiu “Le Samurai”, que muitos estudiosos do seu cinema consideram
uma obra-prima e o primeiro sinal do amadurecimento total do seu estilo que
depois continuaria em títulos como “O Exército das Sombras” ou “O Círculo
Vermelho”.
O OFÍCIO DE MATAR
Título original: Le samouraï
Realização: Jean-Pierre Melville (França,
Itália, 1967); Argumento: Jean-Pierre Melville, Georges Pellegrin, segundo
romance de Joan McLeod ("The Ronin"); Produção: Raymond Borderie,
Eugène Lépicier; Música: François de Roubaix; Fotografia (cor): Henri Decaë;
Montagem: Monique Bonnot, Yolande Maurette; Design de produção: François de
Lamothe; Decoração: François de Lamothe; Direcção de Produção: Georges Casati;
Assistentes de realização: Georges Pellegrin; Departamento de arte: André Boumedil,
Robert Christidès, Angelo Rizzi; Som: René Longuet, Robert Pouret, Alex Pront;
Companhias de produção: Compagnie Industrielle et Commerciale Cinématographique
(CICC), Fida Cinematografica, Filmel, TC Productions; Intérpretes: Alain Delon (Jef Costello), François Périer
(Comissário da policia), Nathalie Delon (Jane Lagrange), Cathy Rosier
(pianista), Jacques Leroy (o homem na passerelle), Michel Boisrond (Wiener),
Robert Favart (barman), Jean-Pierre Posier (Olivier Rey), Catherine Jourdan,
Roger Fradet, Carlo Nell, Robert Rondo, André Salgues, André Thorent, Jacques
Deschamps, Georges Casati, Jacques Léonard, Pierre Vaudier, Maurice Magalon,
Gaston Meunier, Jean Gold, Georges Billy, Ari Aricardi, Guy Bonnafoux, Humberto
Catalano, Carl Lechner, Maria Maneva, etc. Duração:
105 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Cine Digital; Classificação
etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 3 de Novembro de 1968.
ALAIN DELON (1935- )
Alain
Delon nasceu em Sceaux, na Borgonha, próximo de Paris. Aos quatro anos, viu os
pais, Edith e Fabian, divorciarem-se. Foi então adoptado por um casal, que
pouco depois seria assassinado. Volta para junto da mãe, entretanto já casada
com outro homem, e enfrenta uma infância problemática, com expulsões de várias
escolas. Aos 15 anos deixa de estudar e, dois anos depois, alista-se na marinha
francesa, indo lutar na Indochina. Em 1956, regressa a Paris, sem posses,
arranja vários empregos, porteiro, garçon, vendedor. Vizinho da cantora Dalida,
tornam-se grandes amigos. Em 1957, no Festival de Cannes, onde foi com o amigo
Jean-Claude Brialy, chama a atenção do produtor David O. Selznick, que lhe
ofereceu um contrato, mas tem de aprender a falar inglês. Entretanto conhece o
realizador Yves Allégret, que o convenceu a começar sua carreira na França. Em
1957 interpreta o seu primeiro filme, “Quand la Femme s'en Mele”. Em
“Christine” conhece Romy Schneider, e
ambos se apaixonam. Em 1959, foram morar juntos, relacionamento que durou cinco
anos.
O seu
primeiro grande papel no cinema foi em “Plein Soleil”, de René Clément (1959),
que lhe abre as portas para o sucesso. Seguem-se vários títulos importantes,
“Rocco e Seus Irmãos” (1960), de Luchino Visconti, com quem volta a trabalhar
em “O Leopardo” (1963). Delon é, por essa altura, um sex symbol do cinema
europeu, mas igualmente um actor reconhecido, que trabalha com grandes
cineastas, como Michelangelo Antonioni, em “O Eclipse”, Jean-Pierre Melville,
em “Le Samouraï” (1967), “O Círculo Vermelho” (1970) e “Cai a Noite Sobre a
Cidade” (Un flic, 1971), Valerio Zurlini, em “Outono Escaldante” (1972), Joseph
Losey, em “O Assassinato de Trotsky” (1972) e” Mr. Klein” (1976) ou Jean-Luc
Godard, em “Nouvelle Vague” (1990). Interpretou mais de uma centena de títulos,
e afastou-se do cinema, em finais dos anos 90. Apenas surgiu num ou outro
trabalho de TV.
Em
1964, casou-se com a atriz Nathalie Delon, e separaram-se em 1969. Depois teve
um longo relacionamento com a actriz Mireille Darc. Durante o período em que
estava casado com Nathalie, ocorreu um escândalo. Em 1968, um dos seus
guarda-costas, Stevan Markovic, foi assassinado e Delon viu-se envolvido no
caso. Em 1987 conhece a modelo holandesa Rosalie Van Bremen, e passam a viver
juntos. Separam-se em 2001 e Delon conhece um período de depressão que o leva a
considerar o suicídio. Em 2012 sofreu um AVC.
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