sexta-feira, 11 de novembro de 2016

O SÉTIMO SELO


O SÉTIMO SELO (1957)



No livro do Apocalipse, no Novo Testamento, pode ler-se o seguinte sobre “O sétimo selo”:
(…) Quando o Cordeiro abriu o sétimo selo, houve silêncio no céu por mais ou menos meia hora. Então vi os sete anjos, que se acham em pé diante de Deus, e vi que lhes foram dadas sete trombetas.
Depois veio outro anjo e ficou de pé junto ao altar. Ele estava com um incensário de ouro e foi-lhe dado muito incenso para ser oferecido com as orações de todo o povo de Deus sobre o altar de ouro que se encontra diante do trono. E a fumaça do incenso, juntamente com as orações do povo de Deus, subiu da mão do anjo à presença de Deus. E o anjo pegou o incensário, encheu-o do fogo do altar e o atirou à terra. E houve trovões, barulhos, relâmpagos e terremoto.
As trombetas dos sete anjos
Então os sete anjos que tinham as trombetas prepararam-se para tocá-las. O primeiro anjo tocou a sua trombeta e fogo e uma chuva de pedras misturados com sangue foram atirados à terra. Uma terça parte da terra foi queimada, assim como uma terça parte das árvores e toda erva verde.
O segundo anjo tocou a sua trombeta e uma coisa, que parecia uma grande montanha pegando fogo, foi atirada ao mar. Uma terça parte do mar tornou-se em sangue, uma terça parte dos animais que viviam no mar morreu e uma terça parte das embarcações foi destruída.
O terceiro anjo tocou a sua trombeta e uma grande estrela, que estava queimando como uma tocha, caiu do céu sobre uma terça parte dos rios e sobre as fontes de água. Uma terça parte das águas se tornou em absinto (pois o nome da estrela era Absinto) e muitas pessoas morreram porque beberam daquela água, uma vez que ela tinha se tornado amarga.
O quarto anjo tocou a sua trombeta e uma terça parte do sol, da lua e das estrelas foi ferida, de modo que uma terça parte deles se tornou escura. Assim, uma terça parte do dia e da noite ficou sem luz.
Depois eu olhei e ouvi uma águia que voava no meio do céu e dizia em voz alta: —Ai! Ai! Ai dos que moram na terra, por causa dos restantes sons de trombeta que os outros três anjos ainda têm que tocar!
(Apocalipse 8:11)



“O Sétimo Selo”, escrito e realizado por Ingmar Bergman, partindo de uma peça de teatro de sua autoria, é considerado uma das obras-primas do cineasta sueco, “descoberto” dois anos antes (1955) pelos europeus do centro e sul do continente quando “Sorrisos de uma Noite de Verão” é apresentado no Festival de Cannes. “Descobre-se” então um autor de uma profunda exigência estética e intelectual, um homem com um universo extremamente pessoal, e percebe-se que os povos nórdicos continuam a “inventar” artistas de um rigor plástico e de uma profundidade de olhar sobre o mundo e os seres humanos, inclusive na sua relação com o divino, que não deixa de surpreender.
A vida e os seus prazeres, a morte e os seus temores, o destino obscuro do homem, o absurdo da sua existência perante o irremediável final, o diálogo com Deus, as noções de culpa e de remorso, o sofrimento e a dor, estes são alguns dos temas constantes na filmografia de Ingmar Bergman (e não só na sua filmografia, mas também no seu outro trabalho, na escrita, no teatro, na encenação…). Em quase todas as suas obras estes temas surgem com maior ou menor acuidade, mas eles são o centro de “O Sétimo Selo”.
Estamos em plena Idade Média, na Suécia, e vamos ao encontro de um cavaleiro, Antonius Block (Max von Sydow), e do seu fiel companheiro, Jons (Gunnar Björnstrand), ambos regressados das cruzadas. Vêm obviamente desiludidos com a aventura a que tinham sobrevivido, sem terem encontrado um sinal, uma qualquer indicação da presença divina. No seu caminho apenas os horrores da guerra e o silêncio total de qualquer voz redentora. Ao chamar a esta obra “O Sétimo Selo”, Bergman vai inspirar-se numa referência do Livro do Apocalipse onde se fala de um livro que contém sete selos, que se vão abrindo um a um, provocando cada um deles uma nova maldição, até chegar ao sétimo, o mais devastador, que levará ao fim do mundo.
É claro que a intenção de Bergman ao repescar os tempos da Idade Média seria essencialmente falar do seu tempo. Não será por acaso, cremos, que se fala nesse fim do mundo quando a Humanidade atravessa um período extremamente perigoso, com a guerra fria no seu apogeu e a ameaça nuclear a cada esquina. Não se teria ainda igualmente esquecido o horror da II Guerra Mundial e do holocausto.
O ambiente da Idade Média permite ao cineasta criar um clima de persistente pessimismo e terror apocalíptico, tanto mais que cavaleiro e escudeiro se cruzam com fanatismos vários, peste, morte, autos de fé e tudo o mais que se possa imaginar de tenebroso. Alguns comentadores muito preocupados com o rigor histórico em “stricto sensu”, acusam o filme de alguns anacronismos. Dizem, por exemplo, que o regresso das cruzadas e a peste na Suécia não são contemporâneos. Também a perseguição às bruxas naquela zona da Europa não coincide temporalmente com o fim das cruzadas. Mas acreditamos que tais desajustes não beliscam em nada o espírito da obra que não pretende ser um compêndio de História, mas tão somente (ou sobretudo) uma meditação sobre o (absurdo) destino do homem na Terra e as suas permanentes interrogações sobre a vida e a morte.


Bergman ter-se-á inspirado mesmo num famoso quadro de Albertus Pictor, "A Morte disputando uma partida de xadrez", existente na diocese de Estocolmo, para imaginar o motivo central de “O Sétimo Selo”. Na verdade, chegado à sua terra natal, o cavaleiro Antonius Block depara-se com a Morte (Bengt Ekerot), que aparentemente o virá buscar para o levar para terras desconhecidas envolto no seu manto negro. Mas Antonius Block, que aceita o diálogo com essa misteriosa personagem com alguma naturalidade, não está preparado para a acompanhar e propõe à morte um contrato, baseado num jogo de xadrez. Ele e a Morte irão disputar uma partida e a sinistra criatura só o levará depois de terminado o jogo. Assim ganha tempo para procurar respostas para algumas questões e prosseguir a sua viagem.  Mas a divindade é muda e só as atrocidades humanas se mostram na sua eloquência macabra. Cortejo de flagelados, uma jovem considerada bruxa queimada viva, a peste e a mais completa miséria e degradação humana não respondem aos anseios do cavaleiro. O jogo de xadrez vai prosseguindo, e o cavaleiro sabe que nada impedirá a Morte de cumprir o seu destino.
É curioso sublinhar uma evidente afinidade entre “O Sétimo Selo” e o “Don Quixote”, de Cervantes. Em ambos existe a dupla complementar de cavaleiro e escudeiro, e em ambos o cavaleiro se preocupa com questões existenciais profundas, enquanto o companheiro de viagem se mostra muito mais pragmático e conhecedor da vida.
A reflexão de Ingmar Bergman é filosófica e remete obviamente para um nome como Kierkegaard e esse sempre presente vazio ou silêncio de Deus (é possível também falar-se aqui de Friedrich Wilhelm Nietzsche). Não será por acaso que neste aspecto Bergman e Dreyer, ambos nórdicos, sueco e dinamarquês, cruzam visões e influências, ainda que a fé os distinga. Dreyer é um fervoroso crente e Bergman um árido céptico. O que não impede, porém, de existir uma esperança em “O Sétimo Selo”. Um casal de artistas, jongleurs de feira, são os portadores de uma mensagem de alento, desde que se viva simplesmente e se busquem os prazeres mais óbvios da vida. Chamam-se Maria (Bibi Andersson) e José (Nils Poppe) e têm um filho.
Esta família de artistas de circo, que anda de feira em feira, escapa à Morte, quando o cavaleiro desvia a atenção da terrífica criatura, permitindo que a carroça com os ingénuos artistas parta. Bergman parece indicar com esta situação que só os ingénuos e puros que têm na arte uma forma de vida, sobreviverão. Não à morte, que é certa e segura no final do caminho, mas a um destino sem finalidade. É de salientar qual o tipo de artista que consegue escapulir-se à trágica morte. Não é o pintor amargurado e pessimista, nem o trapaceiro director de companhia. É precisamente um casal de artistas sem pretensões, que faz da vida um acto de prazer e de diversão, por muitas que sejam as dificuldades e os perigos. E que glorifica a vida, na figura de um filho que irá assegurar o futuro.
A arte de Bergman (1918–2007) encontra-se já na sua fase de maturidade, pronta a oferecer-nos algumas das suas mais inspiradas obras, como “Morangos Silvestres” (1957), “A Fonte da Virgem” (1960), “Em Busca da Verdade” (1961), “O Silêncio” (1963), “A Máscara” (1966), “A Vergonha” (1968) ou “Lagrimas e Suspiros” (1972). A estes seguem-se ainda, entre alguns mais que se torna impossível citar aqui, obras exemplares como “Cenas da Vida Conjugal” (1973) “Face a Face” (1976), “O Ovo da Serpente” (1978), “Sonata de Outono” (1978) ou “Da Vida das Marionetas” (1980).
Em “O Sétimo Selo”, Bergman ainda se encontra no seu período de preto e branco, aqui sumptuosamente desenhado pela câmara de Gunnar Fischer, que retira o melhor partido dos contrastes e dos ambientes soturnos e das luminosas paisagens. Mas o filme parece abençoado por alguma nuvem passageira, pois a direcção artística, o guarda-roupa, a montagem, a banda sonora e a interpretação são excelentes, com particular relevo para actores como Max von Sydow, Gunnar Björnstrand, Nils Poppe ou Bibi Andersson, todos eles intérpretes muito queridos do cineasta e muito presentes a sua filmografia. 
O título irá definir daí em diante Ingmar Bergman como um dos grandes cineastas do moderno cinema europeu, depois de ter ganho o prémio Especial do Júri, no Festival de Cannes de 1957 e de ter recebidos diversos outros galardões em festivais internacionais.

 
O SÉTIMO SELO
Título original: Det sjunde inseglet
Realização: Ingmar Bergman (Suécia, 1957); Argumento: Ingmar Bergman, baseado numa peça ("Trämålning") do próprio; Produção: Allan Ekelund; Música: Erik Nordgren; Fotografia (p/b): Gunnar Fischer; Montagem: Lennart Wallén; Design de produção: P.A. Lundgren; Guarda-roupa: Manne Lindholm; Maquilhagem: Nils Nittel; Assistentes de realização: Lennart Olsson; Departamento de arte: Carl-Henry Cagarp; Som: Evald Andersson, Lennart Wallin, Aaby Wedin; Companhias de produção: Svensk Filmindustri (SF); Intérpretes: Gunnar Björnstrand (Jöns), Bengt Ekerot (Morte), Nils Poppe (Jof / José), Max von Sydow (Antonius Block), Bibi Andersson (Mia / Maria), Inga Gill (Lisa), Maud Hansson (bruxa), Inga Landgré (Karin), Gunnel Lindblom, Bertil Anderberg, Anders Ek, Åke Fridell, Gunnar Olsson, Erik Strandmark, Sten Ardenstam, Harry Asklund, Benkt-Åke Benktsson, Tor Borong, Gudrun Brost, Tor Isedal, Ulf Johansson, Tommy Karlsson, Lars Lind, Gordon Löwenadler, Mona Malm, Josef Norman, Gösta Prüzelius, Fritjof Tall, Lennart Tollén, Nils Whiten, Karl Widh, etc.  Duração: 96 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Costa do Castelo Filmes; Leopardo Filmes (2014); Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 23 de Outubro de 1963.

MAX VON SYDOW (1929 - )
Um dos mais conhecidos e reputados actores suecos, Max Carl Adolf von Sydow, de seu nome de baptismo, nasceu a 10 de Abril de 1929, em Lund, Skåne län, na Suécia. Oriundo de uma família da classe média, a mãe, a baronesa Maria Margareta era professora e o pai, Carl Wilhelm von Sydow, etnólogo e professor de folclore. Depois dos estudos iniciais, e depois de passar por um grupo teatral estudantil, inscreveu-se na Royal Dramatic Theatre (1948-1951), onde foi colega de Lars Ekborg, Margaretha Krook ou Ingrid Thulin. Licenciado, trabalhou em teatros de Norrköping e Malmö. Em 1949, estreia-se no cinema, em “Apenas Mãe”, de Alf Sjöberg, mas é sobretudo a partir de 1957, com o seu trabalho em “O Sétimo Selo”, que se torna conhecido internacionalmente, iniciando uma carreira que o divide entre os palcos e os écrans suecos, e os estúdios internacionais, vivendo tanto em Estocolmo, como em Los Angeles, Califórnia, Roma, Itália ou Paris, França. Tornou-se cidadão francês em 2002. É seguramente o actor sueco mais internacional de todos os tempos, tendo aparecido em filmes suecos, dinamarqueses, noruegueses, alemães, franceses, americanos, ingleses, italianos e espanhóis. Mas a sua carreira fica para sempre ligada aos títulos dirigidos por Ingmar Bergman entre os anos 50 e 70, como “Morangos Silvestres”, “No Limiar da Vida”, “O Rosto”, “A Fonte da Virgem”, “Em Busca da Verdade”, “Luz de Inverno”, “A Hora do Lobo”, “A Vergonha”, “Paixão” ou “O Amante” (1971). Desde muito cedo, começou a ser chamado para grandes produções internacionais e o seu nome surge em obras como “A Maior História de Todos os Tempos” (1965), onde interpretou a figura de Cristo, “O Processo Quiller” (1966), “A Carta do Kremlin”, “Os Emigrantes” (1971), “O Exorcista” (1973), “Os Três Dias do Condor” (1975), “Nunca Mais Digas Nunca” (1983), “Duna” (1984), “Ana e as Suas Irmãs” (1986), “Pelle, o Conquistador” (1987), “Despertares” (1990), “Relatório minoritário” (2002), “Shutter Island” (2010), “Extremamente Alto, Incrivelmente Perto” (2011), “Star Wars: O Despertar da Força” (2015) ou na série televisiva “A Guerra dos Tronos” (2016). Em 1988, estreia-se como realizador com “Ved vejen”. Foi casado com a actriz Christina Olin (1951 - 1979), de quem se divorciou e, nesta altura, é casado com a realizadora e professora francesa Catherine Brelet (1997 - )-
É até hoje o único actor sueco a ter sido nomeado para o Oscar de Melhor Actor. Foi-o por das vezes, com “Pelle, o Conquistador” (1987) e com “Extremamente Alto, Incrivelmente Perto” (2011). Actrizes suecas houve cinco: Greta Garbo, Ingrid Bergman, Ann-Margret, Lena Olin e Alicia Vikander.

GUNNAR BJÖRNSTRAND
 (1909 – 1986)
Knut Gunnar Johanson nasceu a 13 de Novembro de 1909, em Estocolmo, Suécia, cidade onde haveria de falecer a 26 de Maio de 1986.  O pai era actor, Oscar Johanson, e não surpreende que tenha o gosto pelo teatro desde novo, apesar de ter passado por diversos empregos antes de se estrear no Lilla Teatern em Estocolmo. Em 1933, começou estudos no Royal Dramatic Theater, condiscípulo de Ingrid Bergman, Signe Hasso e da mulher com quem viria a casar, Lillie Björnstrand. Licenciado, ingressou no Swedish Theater, em Vasa, Finlândia, tendo depois regressado à Suécia. Integrou o elenco do Teatro Hippodrom. Os inícios da carreira no país natal foram difíceis. No cinema, estreou-se no inicio dos anos 30, mas só em 1943, com “Natt i hamn”, de Olof Molander, já era considerado ainda que num pequeno papel. Foi durante a II Guerra Mundial que começou a trabalhar com Ingmar Bergman no teatro, na peça de August Strindberg, “Spöksonaten”. A sua filmografia inicial não é muito brilhante, abundando comédias sem grande relevo. Mas na década de 50, sob a direcção de Ingmar Bergman, torna-se notado em obras como “Noite dos Saltimbancos” (1953), “Uma Lição de Amor” (1954), “Sorrisos de Uma Noite de Verão” (1955), “O Sétimo Selo” ou “Morangos Silvestres” (1957), “O Rosto” (1958), “O Olho do Diabo” (1960), “Em Busca da Verdade” (1961), “Luz de Inverno” (1963), entre algumas mais, num total de 23 participações. Foi o actor que mais trabalhou com Bergman, de quem era amigo pessoal. As derradeiras colaborações com o mestre sueco foram “A Máscara” (1966), “A Vergonha” (1968), “Face a Face” (1976), “Sonata de Outono” (1978) e “Fanny e Alexandre” (1982).

Curioso analisar em paralelo a carreira de Gunnar Björnstrand e Max Von Sydow. Ambos lançados internacionalmente em títulos de Ingmar Bergman, ambos excelentes actores, enquanto Sydow, mais extrovertido, cosmopolita, bon vivant, enveredou por uma carreira internacional com projecção em vários países, Björnstrand, com uma figura que apontava para composições extáticas, puritanas, rigorosas manteve-se pela Suécia, com uma ou outra incursão por filmes sobretudo italianos. 

Sem comentários:

Enviar um comentário