O SÉTIMO SELO (1957)
No
livro do Apocalipse, no Novo Testamento, pode ler-se o seguinte sobre “O sétimo
selo”:
(…)
Quando o Cordeiro abriu o sétimo selo, houve silêncio no céu por mais ou menos
meia hora. Então vi os sete anjos, que se acham em pé diante de Deus, e vi que
lhes foram dadas sete trombetas.
Depois
veio outro anjo e ficou de pé junto ao altar. Ele estava com um incensário de
ouro e foi-lhe dado muito incenso para ser oferecido com as orações de todo o
povo de Deus sobre o altar de ouro que se encontra diante do trono. E a fumaça
do incenso, juntamente com as orações do povo de Deus, subiu da mão do anjo à
presença de Deus. E o anjo pegou o incensário, encheu-o do fogo do altar e o
atirou à terra. E houve trovões, barulhos, relâmpagos e terremoto.
As
trombetas dos sete anjos
Então
os sete anjos que tinham as trombetas prepararam-se para tocá-las. O primeiro
anjo tocou a sua trombeta e fogo e uma chuva de pedras misturados com sangue
foram atirados à terra. Uma terça parte da terra foi queimada, assim como uma
terça parte das árvores e toda erva verde.
O
segundo anjo tocou a sua trombeta e uma coisa, que parecia uma grande montanha
pegando fogo, foi atirada ao mar. Uma terça parte do mar tornou-se em sangue,
uma terça parte dos animais que viviam no mar morreu e uma terça parte das
embarcações foi destruída.
O
terceiro anjo tocou a sua trombeta e uma grande estrela, que estava queimando
como uma tocha, caiu do céu sobre uma terça parte dos rios e sobre as fontes de
água. Uma terça parte das águas se tornou em absinto (pois o nome da estrela
era Absinto) e muitas pessoas morreram porque beberam daquela água, uma vez que
ela tinha se tornado amarga.
O
quarto anjo tocou a sua trombeta e uma terça parte do sol, da lua e das
estrelas foi ferida, de modo que uma terça parte deles se tornou escura. Assim,
uma terça parte do dia e da noite ficou sem luz.
Depois
eu olhei e ouvi uma águia que voava no meio do céu e dizia em voz alta: —Ai!
Ai! Ai dos que moram na terra, por causa dos restantes sons de trombeta que os
outros três anjos ainda têm que tocar!
(Apocalipse
8:11)
“O Sétimo Selo”, escrito e realizado por
Ingmar Bergman, partindo de uma peça de teatro de sua autoria, é considerado
uma das obras-primas do cineasta sueco, “descoberto” dois anos antes (1955)
pelos europeus do centro e sul do continente quando “Sorrisos de uma Noite de
Verão” é apresentado no Festival de Cannes. “Descobre-se” então um autor de uma
profunda exigência estética e intelectual, um homem com um universo
extremamente pessoal, e percebe-se que os povos nórdicos continuam a “inventar”
artistas de um rigor plástico e de uma profundidade de olhar sobre o mundo e os
seres humanos, inclusive na sua relação com o divino, que não deixa de
surpreender.
A vida e os seus prazeres, a morte e os
seus temores, o destino obscuro do homem, o absurdo da sua existência perante o
irremediável final, o diálogo com Deus, as noções de culpa e de remorso, o
sofrimento e a dor, estes são alguns dos temas constantes na filmografia de
Ingmar Bergman (e não só na sua filmografia, mas também no seu outro trabalho,
na escrita, no teatro, na encenação…). Em quase todas as suas obras estes temas
surgem com maior ou menor acuidade, mas eles são o centro de “O Sétimo Selo”.
Estamos em plena Idade Média, na Suécia,
e vamos ao encontro de um cavaleiro, Antonius Block (Max von Sydow), e do seu
fiel companheiro, Jons (Gunnar Björnstrand), ambos regressados das cruzadas.
Vêm obviamente desiludidos com a aventura a que tinham sobrevivido, sem terem
encontrado um sinal, uma qualquer indicação da presença divina. No seu caminho
apenas os horrores da guerra e o silêncio total de qualquer voz redentora. Ao
chamar a esta obra “O Sétimo Selo”, Bergman vai inspirar-se numa referência do
Livro do Apocalipse onde se fala de um livro que contém sete selos, que se vão
abrindo um a um, provocando cada um deles uma nova maldição, até chegar ao
sétimo, o mais devastador, que levará ao fim do mundo.
É claro que a intenção de Bergman ao
repescar os tempos da Idade Média seria essencialmente falar do seu tempo. Não
será por acaso, cremos, que se fala nesse fim do mundo quando a Humanidade
atravessa um período extremamente perigoso, com a guerra fria no seu apogeu e a
ameaça nuclear a cada esquina. Não se teria ainda igualmente esquecido o horror
da II Guerra Mundial e do holocausto.
O ambiente da Idade Média permite ao
cineasta criar um clima de persistente pessimismo e terror apocalíptico, tanto
mais que cavaleiro e escudeiro se cruzam com fanatismos
vários, peste, morte, autos de fé e tudo o mais que se possa imaginar de
tenebroso. Alguns comentadores muito preocupados com o rigor histórico em
“stricto sensu”, acusam o filme de alguns anacronismos. Dizem, por exemplo, que
o regresso das cruzadas e a peste na Suécia não são contemporâneos. Também a
perseguição às bruxas naquela zona da Europa não coincide temporalmente com o
fim das cruzadas. Mas acreditamos que tais desajustes não beliscam em nada o
espírito da obra que não pretende ser um compêndio de História, mas tão somente
(ou sobretudo) uma meditação sobre o (absurdo) destino do homem na Terra e as
suas permanentes interrogações sobre a vida e a morte.
Bergman ter-se-á inspirado mesmo num
famoso quadro de Albertus Pictor, "A Morte disputando uma partida de
xadrez", existente na diocese de Estocolmo, para imaginar o motivo central
de “O Sétimo Selo”. Na verdade, chegado à sua terra natal, o cavaleiro Antonius
Block depara-se com a Morte (Bengt Ekerot), que aparentemente o virá buscar
para o levar para terras desconhecidas envolto no seu manto negro. Mas Antonius
Block, que aceita o diálogo com essa misteriosa personagem com alguma
naturalidade, não está preparado para a acompanhar e propõe à morte um
contrato, baseado num jogo de xadrez. Ele e a Morte irão disputar uma partida e
a sinistra criatura só o levará depois de terminado o jogo. Assim ganha tempo
para procurar respostas para algumas questões e prosseguir a sua viagem. Mas a divindade é muda e só as atrocidades
humanas se mostram na sua eloquência macabra. Cortejo de flagelados, uma jovem
considerada bruxa queimada viva, a peste e a mais completa miséria e degradação
humana não respondem aos anseios do cavaleiro. O jogo de xadrez vai
prosseguindo, e o cavaleiro sabe que nada impedirá a Morte de cumprir o seu
destino.
É curioso sublinhar uma evidente
afinidade entre “O Sétimo Selo” e o “Don Quixote”, de Cervantes. Em ambos
existe a dupla complementar de cavaleiro e escudeiro, e em ambos o cavaleiro se
preocupa com questões existenciais profundas, enquanto o companheiro de viagem
se mostra muito mais pragmático e conhecedor da vida.
A reflexão de Ingmar Bergman é
filosófica e remete obviamente para um nome como Kierkegaard e esse sempre
presente vazio ou silêncio de Deus (é possível também falar-se aqui de Friedrich Wilhelm Nietzsche). Não será por acaso que
neste aspecto Bergman e Dreyer, ambos nórdicos, sueco e dinamarquês, cruzam
visões e influências, ainda que a fé os distinga. Dreyer é um fervoroso crente
e Bergman um árido céptico. O que não impede, porém, de existir uma esperança
em “O Sétimo Selo”. Um casal de artistas, jongleurs de feira, são os portadores
de uma mensagem de alento, desde que se viva simplesmente e se busquem os
prazeres mais óbvios da vida. Chamam-se Maria (Bibi Andersson) e José (Nils
Poppe) e têm um filho.
Esta família de artistas de circo, que
anda de feira em feira, escapa à Morte, quando o cavaleiro desvia a atenção da
terrífica criatura, permitindo que a carroça com os ingénuos artistas parta.
Bergman parece indicar com esta situação que só os ingénuos e puros que têm na
arte uma forma de vida, sobreviverão. Não à morte, que é certa e segura no
final do caminho, mas a um destino sem finalidade. É de salientar qual o tipo
de artista que consegue escapulir-se à trágica morte. Não é o pintor amargurado
e pessimista, nem o trapaceiro director de companhia. É precisamente um casal
de artistas sem pretensões, que faz da vida um acto de prazer e de diversão,
por muitas que sejam as dificuldades e os perigos. E que glorifica a vida, na
figura de um filho que irá assegurar o futuro.
A arte de Bergman (1918–2007)
encontra-se já na sua fase de maturidade, pronta a oferecer-nos algumas das
suas mais inspiradas obras, como “Morangos Silvestres” (1957), “A Fonte da
Virgem” (1960), “Em Busca da Verdade” (1961), “O Silêncio” (1963), “A Máscara”
(1966), “A Vergonha” (1968) ou “Lagrimas e Suspiros” (1972). A estes seguem-se
ainda, entre alguns mais que se torna impossível citar aqui, obras exemplares
como “Cenas da Vida Conjugal” (1973) “Face a Face” (1976), “O Ovo da Serpente”
(1978), “Sonata de Outono” (1978) ou “Da Vida das Marionetas” (1980).
Em “O Sétimo Selo”, Bergman ainda se
encontra no seu período de preto e branco, aqui sumptuosamente desenhado pela
câmara de Gunnar Fischer, que retira o melhor partido dos contrastes e dos
ambientes soturnos e das luminosas paisagens. Mas o filme parece abençoado por
alguma nuvem passageira, pois a direcção artística, o guarda-roupa, a montagem,
a banda sonora e a interpretação são excelentes, com particular relevo para
actores como Max von Sydow, Gunnar Björnstrand, Nils Poppe ou Bibi Andersson,
todos eles intérpretes muito queridos do cineasta e muito presentes a sua
filmografia.
O título irá definir daí em diante
Ingmar Bergman como um dos grandes cineastas do moderno cinema europeu, depois
de ter ganho o prémio Especial do Júri, no Festival de Cannes de 1957 e de ter
recebidos diversos outros galardões em festivais internacionais.
O
SÉTIMO SELO
Título original: Det
sjunde inseglet
Realização: Ingmar Bergman
(Suécia, 1957); Argumento: Ingmar Bergman, baseado numa peça
("Trämålning") do próprio; Produção: Allan Ekelund; Música: Erik
Nordgren; Fotografia (p/b): Gunnar Fischer; Montagem: Lennart Wallén; Design de
produção: P.A. Lundgren; Guarda-roupa: Manne Lindholm; Maquilhagem: Nils
Nittel; Assistentes de realização: Lennart Olsson; Departamento de arte:
Carl-Henry Cagarp; Som: Evald Andersson, Lennart Wallin, Aaby Wedin; Companhias
de produção: Svensk Filmindustri (SF); Intérpretes:
Gunnar Björnstrand (Jöns), Bengt Ekerot (Morte), Nils Poppe (Jof / José), Max
von Sydow (Antonius Block), Bibi Andersson (Mia / Maria), Inga Gill (Lisa),
Maud Hansson (bruxa), Inga Landgré (Karin), Gunnel Lindblom, Bertil Anderberg,
Anders Ek, Åke Fridell, Gunnar Olsson, Erik Strandmark, Sten Ardenstam, Harry
Asklund, Benkt-Åke Benktsson, Tor Borong, Gudrun Brost, Tor Isedal, Ulf
Johansson, Tommy Karlsson, Lars Lind, Gordon Löwenadler, Mona Malm, Josef
Norman, Gösta Prüzelius, Fritjof Tall, Lennart Tollén, Nils Whiten, Karl Widh,
etc. Duração: 96 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Costa do
Castelo Filmes; Leopardo Filmes (2014); Classificação etária: M/ 12 anos; Data
de estreia em Portugal: 23 de Outubro de 1963.
MAX
VON SYDOW (1929 - )
Um
dos mais conhecidos e reputados actores suecos, Max Carl Adolf von Sydow, de
seu nome de baptismo, nasceu a 10 de Abril de 1929, em Lund, Skåne län,
na Suécia. Oriundo de uma família da classe média, a mãe, a baronesa Maria
Margareta era professora e o pai, Carl Wilhelm von Sydow, etnólogo e professor
de folclore. Depois dos estudos iniciais, e depois de passar por um grupo
teatral estudantil, inscreveu-se na Royal Dramatic Theatre (1948-1951), onde
foi colega de Lars Ekborg, Margaretha Krook ou Ingrid Thulin. Licenciado,
trabalhou em teatros de Norrköping e Malmö. Em 1949, estreia-se no cinema, em
“Apenas Mãe”, de Alf Sjöberg, mas é sobretudo a partir de 1957, com o seu
trabalho em “O Sétimo Selo”, que se torna conhecido internacionalmente,
iniciando uma carreira que o divide entre os palcos e os écrans suecos, e os
estúdios internacionais, vivendo tanto em Estocolmo, como em Los Angeles,
Califórnia, Roma, Itália ou Paris, França. Tornou-se cidadão francês em 2002. É
seguramente o actor sueco mais internacional de todos os tempos, tendo
aparecido em filmes suecos, dinamarqueses, noruegueses, alemães, franceses,
americanos, ingleses, italianos e espanhóis. Mas a sua carreira fica para
sempre ligada aos títulos dirigidos por Ingmar Bergman entre os anos 50 e 70,
como “Morangos Silvestres”, “No Limiar da Vida”, “O Rosto”, “A Fonte da
Virgem”, “Em Busca da Verdade”, “Luz de Inverno”, “A Hora do Lobo”, “A Vergonha”,
“Paixão” ou “O Amante” (1971). Desde muito cedo, começou a ser chamado para
grandes produções internacionais e o seu nome surge em obras como “A Maior
História de Todos os Tempos” (1965), onde interpretou a figura de Cristo, “O
Processo Quiller” (1966), “A Carta do Kremlin”, “Os Emigrantes” (1971), “O
Exorcista” (1973), “Os Três Dias do Condor” (1975), “Nunca Mais Digas Nunca”
(1983), “Duna” (1984), “Ana e as Suas Irmãs” (1986), “Pelle, o Conquistador”
(1987), “Despertares” (1990), “Relatório minoritário” (2002), “Shutter Island”
(2010), “Extremamente Alto, Incrivelmente Perto” (2011), “Star Wars: O
Despertar da Força” (2015) ou na série televisiva “A Guerra dos Tronos” (2016).
Em 1988, estreia-se como realizador com “Ved vejen”. Foi casado com a actriz
Christina Olin (1951 - 1979), de quem se divorciou e, nesta altura, é casado
com a realizadora e professora francesa Catherine Brelet (1997 - )-
É até hoje o único actor sueco a ter
sido nomeado para o Oscar de Melhor Actor. Foi-o por das vezes, com “Pelle, o
Conquistador” (1987) e com “Extremamente Alto, Incrivelmente Perto” (2011).
Actrizes suecas houve cinco: Greta Garbo, Ingrid Bergman, Ann-Margret, Lena
Olin e Alicia Vikander.
(1909 – 1986)
Knut Gunnar Johanson nasceu a 13 de Novembro
de 1909, em Estocolmo, Suécia, cidade onde haveria de falecer a 26 de Maio de
1986. O pai era actor, Oscar Johanson, e
não surpreende que tenha o gosto pelo teatro desde novo, apesar de ter passado
por diversos empregos antes de se estrear no Lilla Teatern em Estocolmo. Em
1933, começou estudos no Royal Dramatic Theater, condiscípulo de Ingrid
Bergman, Signe Hasso e da mulher com quem viria a casar, Lillie Björnstrand.
Licenciado, ingressou no Swedish Theater, em Vasa, Finlândia, tendo depois regressado
à Suécia. Integrou o elenco do Teatro Hippodrom. Os inícios da carreira no país
natal foram difíceis. No cinema, estreou-se no inicio dos anos 30, mas só em
1943, com “Natt i hamn”, de Olof Molander, já era considerado ainda que num
pequeno papel. Foi durante a II Guerra Mundial que começou a trabalhar com
Ingmar Bergman no teatro, na peça de August Strindberg, “Spöksonaten”. A sua
filmografia inicial não é muito brilhante, abundando comédias sem grande
relevo. Mas na década de 50, sob a direcção de Ingmar Bergman, torna-se notado
em obras como “Noite dos Saltimbancos” (1953), “Uma Lição de Amor” (1954),
“Sorrisos de Uma Noite de Verão” (1955), “O Sétimo Selo” ou “Morangos
Silvestres” (1957), “O Rosto” (1958), “O Olho do Diabo” (1960), “Em Busca da
Verdade” (1961), “Luz de Inverno” (1963), entre algumas mais, num total de 23
participações. Foi o actor que mais trabalhou com Bergman, de quem era amigo
pessoal. As derradeiras colaborações com o mestre sueco foram “A Máscara”
(1966), “A Vergonha” (1968), “Face a Face” (1976), “Sonata de Outono” (1978) e
“Fanny e Alexandre” (1982).
Curioso analisar em paralelo a carreira
de Gunnar Björnstrand e Max Von Sydow. Ambos lançados internacionalmente em
títulos de Ingmar Bergman, ambos excelentes actores, enquanto Sydow, mais
extrovertido, cosmopolita, bon vivant, enveredou por uma carreira internacional
com projecção em vários países, Björnstrand, com uma figura que apontava para
composições extáticas, puritanas, rigorosas manteve-se pela Suécia, com uma ou
outra incursão por filmes sobretudo italianos.